segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Conto: Mais um Campeão de Audiência

Escrevi essa história há uns dois anos. Achei o rascunho esses dias e resolvi publicá-la. Críticas são bem vindas, podem malhar à vontade.


I

Olá. Você me conhece. Estou na tevê toda semana, horário nobre. Você também pode aparecer, mas se for na minha hora sai caro. Cem mil reais cada dez segundos. Aqui pro Andy Warhol que no futuro todo mundo vai ter quinze minutos de fama. No meu show, não. É o programa mais comentado do país. Tenho controle sobre tudo no meu show. Há o meu dedo em cada figurino, em cada enquadramento daquilo que uma vez ouvi um fã dizer que é sua única hora de felicidade na semana. Veja bem você o tanto que meu show é importante. Consigo unir o carisma do Sílvio Santos à virilidade do Wando, sem falar no meu incomparável talento para protagonizar as histórias, algumas escritas do meu próprio punho. Como diria o Larry King, sou o autêntico one-man show.

Tento surpreender a cada semana. Uma vez é uma sitcom, – sou também um ótimo humorista – na outra já é uma aventura policialesca com um cara cínico e durão. As músicas são um capítulo à parte. É claro que todos querem ter suas canções escolhidas para o meu show, então tem sempre um bando de puxa-sacos de gravadoras me dando cds para eu ouvir no meu importado alemão vermelho e então decidir quem vai ter a honra de animar minhas peripécias na tevê. Mas eu só mexo com biscoito fino. Afinal de contas, já me tornei um referencial, tanto pela qualidade técnica do meu show quanto pela imaginação de meus redatores. Para não parecer pedante, não vou nem mencionar a edição ágil e a fotografia esmerada. Saio com a produção em busca das melhores locações, como já disse, nada acontece no meu show sem que eu não saiba. E tem mais: com um telefonema sou capaz de levar desconhecidos ao estrelato ou arruinar a carreira de atores consagrados. Conhece a Jéssica Penafiel? Fui eu quem a indicou pro Big Brother, e de quebra um papel na novela das oito. Logo vamos estrear a nova temporada, trazendo muitas inovações, e vou te confessar uma coisa: por trás de todo meu poderio sou um manteiga-derretida, me apaixonei pela Jessie e tive que garantir a ela que terá participações de destaque nos próximos programas. Isso a acalmou um pouco e reaqueceu nosso relacionamento, ultimamente ela andava meio arredia. Temos três idéias prontas, com sinopse e tudo e cabe a eu escolher qual delas irá ao ar. Na primeira, ao som de música trance, sou um jovem herdeiro de um bilionário que foi assassinado, mas que todo mundo acha que morreu do coração. Na outra sou um superespião equipado com um foguete nas costas que faz ele voar enquanto toca aquela música de discoteca dos anos 70, Ring my Bell. Alguém aí conhece esta? Sabia que ninguém ia conhecer, esta juventude é tão alienada que meu sobrinho já tem dezenove anos e nunca viu Os embalos de sábado à noite. A última opção conta a história de um estudante universitário toxicômano que transita por desde favelas até restaurantes caros, lançando um olhar singular ao caos urbano, meio existencialista. Não estou preocupado com a escolha, sei que qualquer um vai ser um tremendo sucesso, mas desta vez quero fazer algo mais audacioso, mais autoral, então vou ficar com esta última sinopse, tocando “Hey bulldog”, dos Beatles, na abertura. Amanhã mesmo mostro o roteiro para os mandachuvas e descolo uma verba.


II

Este mundo não me merece. Hoje descobri que sou uma das pessoas mais solitárias do mundo. Tudo bem, não me importo. Homens à frente de seu tempo são naturalmente sozinhos, pois suas idéias avançadas sempre se chocam contra o sistema. Incomodamos, botamos o dedo na ferida. Por isso que aqueles engravatados não aprovaram o roteiro. Para começar eles não entenderam nada. Tudo bem. Não tem problema. Vou receber uma gigantesca indenização pela quebra de contrato e com a grana vou montar minha própria produtora. Eu não cabia mais naquele esquema artificial da emissora. Aqueles babacas acham que entendem do riscado, mas estão totalmente fora de sintonia com o público. Eu conheço meu público. Meu show tem a capacidade de entreter simultaneamente desde o avô até o netinho. É impressionante. E quando eu digo que meu público está pronto para meu novo show eu sei do que estou falando. Mas eles se recusam a enxergar isso, então, que posso fazer? Perdoai-os, Senhor, pois eles não sabem o que fazem. Nem a Jéssica. Não consigo falar com ela. Vou trilhar meu caminho solitário, que é tortuoso, mas me levará ao Olimpo. No mínimo.

III

Eu não disse que são uns babacas? Enganei aqueles executivos otários direitinho. Logo depois que tomei a decisão de sair da emissora, levando comigo toda minha equipe, um emissário deles me procurou propondo um acordo. Eu teria minha história filmada desde que fizesse umas alterações no roteiro. Aí eu prometi reescrevê-lo: podei uma frase de duplo sentido aqui, uma cena com pivetes cheirando cola ali, e mandei para eles. Na verdade a trama ficou quase igual, não fiz quase nenhuma concessão e eles engoliram aquilo como se fosse mais uma pseudocrítica da sociedade: rebelde e contestadora na aparência, mas com conteúdo inofensivo. No entanto, o que havia de mais provocador no roteiro, assim como a mensagem final, foi preservado. Eu tinha bolado um desfecho triste para a história com o intuito de fazer as pessoas refletirem um pouco sobre suas patéticas existências, mas me convenceram a fazer um final feliz. Mas mantive a frase que um coadjuvante diz sobre o desperdício de comida nos lares burgueses. O diretor de marketing deu a idéia de mudar o título de “Você-sabe-o-meu-nome Show” para “Crônicas Alternativas”. Achei essa sugestão extremamente indelicada da parte deles e ao ouvir aquilo comecei a sentir umas palpitações. Dane-se, as pessoas vão enxergar meu gênio criativo flamejante por trás desse nome idiota. O fato de o protagonista ser usuário de drogas incomodava bastante os executivos, na verdade ele não pode nem fumar Freea, conforme estava no roteiro, porque eles já tinham fechado o patrocínio com os cigarros Oliú, então mudei seu vício para filmes com o Jean-Claude Van Damme. Isso também não prejudica em nada minhas intenções, pois o drama da dependência, a desgraça da família, a agonia da abstinência, tudo é igual, não importa a droga. Em suma: a essência da minha história permaneceu intocada. A Jéssica, em respeito a mim, foi confirmada como par amoroso do ator principal. Por isso eu quase que nem liguei, só comecei a suar um pouco e a palpitação piorou, quando na reunião que antecedia o início das filmagens fui comunicado que já tinham o ator que faria o protagonista, Pablo Algaz, e que como eu havia escrito o roteiro seria justo eu não atuar no programa, cedendo meu papel a um ator menos famoso, mas com potencial. Garantiram que assim que meu cabelo parasse de cair e eu conseguisse controlar o peso eu voltaria a atuar. Afinal de contas, eu sempre fora conhecido não só pelo meu extraordinário talento, mas também por minha humildade e generosidade. Pelo menos foi isso que o diretor de marketing me falou. Fazia sentido. Conseqüentemente, o que não fazia sentido era ter meu nome no título, já que eu não atuaria. Eu posso ser um gênio, mas quem sou eu para negar a Lógica? Concordei, enquanto lutava para parar com o tique nervoso que subitamente me acometeu, piscando e botando a língua para fora. Neste momento um outro engravatado perguntou se estava tudo bem comigo. Claro, respondi, tentando elevar-me da cadeira de um modo que eles não notassem o quanto eu tremia. Digo tentando porque as pernas bambearam e caí no chão. Me levantaram, eu tremia e suava frio, mas firmei o pé no carpete e me encaminhei para a porta da sala de reuniões. Queriam chamar um médico mas eu nem dei atenção, provavelmente minha pressão tinha caído ou algo assim. E pensei que naquele momento o melhor seria dar uma espairecida numa casa de massagem. Mas logo mudei de idéia: quem precisa de prostitutas quando se tem Jéssica Penafiel a seus pés? Me dirigi ao camarim dela, não estava me sentindo bem mesmo, a azia começava a roer meu estômago. Fui abrindo a porta sem pedir licença e a flagrei numa situação que eu jamais conceberia, mesmo com toda minha criatividade: ela estava sentada na penteadeira urrando coisas ininteligíveis enquanto Pablo Algaz a possuía. Nem notaram minha presença. Por um momento minha visão escureceu, minhas tripas reviraram, nem sei como não desmaiei. De alguma forma consegui chegar até a porta da emissora, onde fui surpreendido pela ausência de meu importado na vaga exclusiva que possuo. Pedi explicações ao porteiro sobre meu carro e ele sorriu meio sem jeito falando que o carro era da emissora e que fora emprestado ao tal “ator menos famoso”. Não me lembro o que aconteceu depois. Aliás, a partir deste dia minha memória virou um lugar nebuloso e escuro, iluminado por clarões esparsos. Pois tudo que me recordo foi de ter tirado uma navalha do bolso e do sangue esguichando com admirável pressão, me remetendo ao Jet d’Eau, o enorme e belo chafariz que uma vez visitei em Genebra.

IV

Não sei se chegaram a filmar meu roteiro. Não sei há quanto tempo estou aqui. É um lugar simples, espartano, tudo pintado de branco, uma espécie de spa de terceira classe. Bem que eu já tinha ouvido comentários sobre a crise financeira da emissora, mas eles poderiam ter aberto um precedente para um artista da minha estirpe e me colocado num lugar onde pelo menos os hóspedes são mais civilizados. Aqui parece que só tem gente louca. Estas são as férias mais monótonas da minha vida. Quando tentei sair da área do "resort", um guarda me impediu dizendo que havia uma epidemia terrível de um vírus africano e que toda a área estava de quarentena. Não sei o que esta palavra significa, mas me remete a coisas doentias, moribundas, como hospitais psiquiátricos, então achei melhor voltar para o meu quarto naquele estranho spa onde os funcionários usam roupas brancas e os hóspedes, infames aventais azuis. Nem sei como me convenceram a vestir isso. Mas acho que com a quantidade de remédios que estão me dando, logo estarei com o físico de um Stallone e o cérebro de um Stephen Hawking, então não ligo muito. Aproveito as longas horas de inatividade escrevendo novos roteiros, documentários, novelas...mostrei alguns rascunhos para os hóspedes e eles adoraram. O da camisa-de-força, então, babou de felicidade quando ouviu a sinopse de minha nova série. Esse pessoal da emissora é sortudo mesmo em contar com um profissional que trabalha para eles até nas férias. Entrego tudo para um cara de branco que promete que vai mandar para a emissora. Até agora eles não aproveitaram nada. Digo isso porque estou assistindo eles o dia inteiro. Perguntei ao meu emissário o porquê daquilo. Ele me deu um tapinha no ombro e falou que meu trabalho era de alto nível, um nível acima do popular, por isso eles preferem exibir minhas criações na tevê paga. Ah! Então é isso! O local obviamente só tem os canais abertos. Pedi para ele gravar um dos programas para mim, mas ele se esquivou e afastou-se.

Hoje apareceu um cara aqui. Ele queria falar comigo. Fiquei feliz, ultimamente ninguém tem me procurado. Falou que era um representante da emissora e que queriam filmar minha vida. "Minha vida? Todos conhecem minha vida, a ascensão meteórica para o estrelato, meu apogeu eterno no Panteão dos Deuses da Oitava Arte...", mas ele parecia não estar prestando muita atenção, ficava só falando "sei, sei" enquanto tirava um papel da pasta. Estava cheio de escritos em letra miúda, uma espécie de lista com um espaço pontilhado no final. A leitura é um hábito inútil, uma grande perda de tempo; nunca leio nada, não ia ser naquela hora que eu ia ser diferente. Com um belo sorriso no rosto, o cara falou que era só assinar na linha pontilhada. Obedeci cordialmente, devia ser um autógrafo para o filho ou até para ele próprio. Esse meu público me ama mesmo.

FIM

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