domingo, 16 de março de 2008

Metal - Parte 1

Não, não sou metaleiro. Talvez tenho esboçado alguma identificação com headbangers em minha adolescência tardia, já mais próximo dos 20 anos, naquela fase quando o mundo se abre pra você como uma cornucópia de maravilhas. Me aplicaram no Iron Maiden, achei pesado demais, com o tempo acabei gostando. Depois, num impressionante processo de expansão da consciência, tomei conhecimento do Led, Deep Purple, Sabbath, Cream (considera este heavy?). Minha trajetória musical é um tanto incomum. Quando criança, nada de Balão Mágico, Xuxa ou Menudo (se você nasceu depois dessa era paleolítica, a grosso modo esse povo hoje corresponde respectivamente ao High School Musical, alguma loura gostosa da vez, tipo Kelly Key ou Britney Spears e o grupo RBD, se não me engano). Acho que eu era uma versão mineira do geek ou nerd, pois aos 10 anos colecionava discos do Milton Nascimento e Beto Guedes. E ainda passava horas elaborando rankings altamente criteriosos das melhores músicas deles, divididos em categorias como letra, arranjo e "quociente emocional", a capacidade da música te arrepiar. No topo tinha Travessia, Nos Bailes da Vida, Para Lennon e McCartney, Canção da América e Feira Moderna (essa do Beto) Tinha certeza absoluta que me tornaria um escritor de grande sucesso, meu ídolo era o L.F. Verissimo.

Na mesma época - lembre-se, com 10 anos, meu pai me levou - fui no Rock in Rio I. Sim, o primeiro, legendário, com AC/DC, Iron Maiden, Whitesnake, Ozzy, Scorpions. Era a fse de ouro do Metal. E eu era tão cdf que odiava essas bandas e preferi ir no dia do George Benson e James Taylor.


Tsc, tsc. Ainda vou construir uma máquina do tempo para voltar a janeiro de 85 e corrigir essa cagada.


Assim como a maior parte do mundo, eu também discriminava os metaleiros. Satanistas, hedonistas, incompetentes, marginais etc. Não entendia como meus amigos podiam gostar daquilo e mesmo esses sequer tinham uma pálida idéia do que Satanismo realmente se trata. Na verdade, eu ainda não estava pronto. Pois metal está ligado à força, liberdade, questionamentos como: onde foi parar minha rebeldia, meu desejo de não compactuar com uma sociedade hipócrita? Como amadurecer sem deixar de ser fiel a mim mesmo? Como ser idealista num mundo onde as instituições que julgavam-se guardiãs da moral estão em colapso? A civilização ocidental e seus líderes já não oferecem mais escolhas, ou você entra no ritmo deles ou será rotulado como "doidão".
Se você deixar de lado mitos como o Ozzy comendo pintinhos, adoração ao Demo, promiscuidade, drogas e tudo mais, verá que a tribo dos metaleiros é um dos poucos portos seguros que um garoto com "problemas de adaptação" tem para se agarrar. Ainda tem muita gente que crê que de fato eles adoravam o Belzebu, o diabinho chifrudo com pés de cabra. Meus amigos gostavam do peso da guitarra e títulos como Suicide Solution, mas o metal vai muito além de notícias de tablóide e provocações. Aliás, recomendo o documentário Metal para todos que tiverem esses preconceitos. E prá quem não tem.


Pois o Heavy Metal também pode ser uma ferramenta de auto-conhecimento, ou mesmo auto-preservação desses adolescentes marginalizados. Há uma relação quase mística entre os músicos e os fãs. Em geral e, sobretudo no início da febre, tinham a mesma origem humilde, crescendo em bairros violentos, repletos de drogas e ignorados pelo Estado. Ironicamente, músicas execradas por entidades de direita nos EUA, por supostamente serem nocivas e influenciar negativamente pessoas tão jovens e inocentes, na verdade davam mais sentido a suas vidas. Antes ouvir músicas de certo modo violentas que tornar-se violento. Mais que isso, esses jovens encontravam um lugar no mundo, descobriam pessoas com os mesmos problemas. Sem a hipocrisia dos falsos moralistas, que reprimiam seu lado sombrio, sabiam que o bem e o mal estavam dentro de cada ser humano. Através de letras realmente chocantes, travavam conhecimento com este lado mau, canalizando sua energia de forma mais sadia. Já reparou nas turmas de metaleiros (cada vez mais raras)? Ao contrário dos skinheads, dos mauricinhos que espancam empregadas domésticas, dos torcedores nos estádios, dos marines americanos cheios de espinhas matando iraquianos com a mesma alegria que exterminam demônios no videogame Doom, o metaleiro é pacífico, na dele, tem muita personalidade, preocupa-se em ter opinião própria sobre as coisas, em geral não usa drogas. Se você é pai de um adolescente, sentiria-se mais tranquilo se ele (ou ela) fosse a um baile funk ou a um show do tipo "tributo ao hard rock"?


Dee Snider cumprimenta os Congressistas

Então porque foram tão perseguidos? Nos anos 80, a mulher do Al Gore, Tipper, liderou uma campanha para o banimento das bandas de heavy das rádios, das lojas de disco etc. O genial Dee Snider, do Twisted Sister (We ain´t gonna take it, lembra, com aquele clipe insano, e que foi tão imitado hoje é ironicamente desprezado?), sentiu-se incumbido da missão de defender a si mesmo e seus colegas na Corte. Cara a cara com seus maiores detratores, poíticos importantes, chegou usando uma jaqueta jeans rasgada e aquele cabelão indescritível. Os caretas debochavam dele, mas vacilaram ao subestimá-lo. Tirou do bolso um discurso contundente, bem articulado, objetivo, nunca resvalando na vulgaridade ou na empáfia de seus acusadores. Uma de suas músicas falava do tratamento dentário de um cara ou algo assim, mas a Sra. Tipper viu-a como uma apologia a um monte de coisa ruim, tipo estupro, subserviência, crueldade ou coisa que o valha. Snider disse que cada um interpreta a música a seu modo, de acordo com sua vivência, crenças e sonhos; que se a cabeça dela está cheia merda, ela vai ver merda.


Alice Cooper teve um show proibido em Londres. Ele encenava uns atos violentos e arrematava simulando sua própria decapitação. Ele quis saber o motivo da censura. Violento demais? Macbeth, peça de Shakespeare, só prá citar um entre uma infinitude de exemplos, é um banho de sangue, mas é leitura obrigatória no ensino anglo-americano. Tinha nudez ou mandava a rainha se foder? Não. De fato, os censores ingleses não encontraram uma explicação plausível para vetarem Alice. Particularmente, acho suas pantomimas de um profundo mau gosto. Mas desde quando a estética - no caso, a ausência dela - pode ser passível de censura? Isso me remete ao filme O Povo Contra Larry Flynt. Transcrevo aqui parte do discurso (real) do advogado Alan Isaacman na Suprema Corte dos E.U.A. em defesa do pornógrafo mencionado acima e sua infame publicação, a revista Hustler:


Ladies and gentlemen of the jury, you have heard a lot today, and I'm not gonna go back over it, but you have to go into that room and make some decisions. But before you do, there's something you need to know. I am not trying to suggest that you should like what Larry Flynt does. I don't like what Larry Flynt does, but what I do like is the fact that I live in a country where you and I can make that decision for ourselves. I like the fact that I live in a country where I can pick up Hustler magazine and read it, or throw it in the garbage can if that's where I think it belongs.

Atendendo a pedidos, a tradução:

Srs. e Sras. do júri, vocês ouviram muito hoje, e não vou voltar ao assunto, mas vocês têm que entrar naquelasala e tomar umas decisões. Antes disso, há algo que precisam saber. Não quero convencê-los a gostar do que Larry Flynt faz. Eu não gosto, mas gosto do fato de viver em um país onde você e eu podemos tomar nossas próprias decisões. Gosto do fato de viver em um país onde posso pegar a revista Hustler e lê-la, ou posso jogá-la no lixo se achar que este é o lugar dela.


Ainda tenho muito a falar do assunto, mesmo porque ao revisar esse texto agora é que notei que fugi do tema e ficou meio sem pé nem cabeça. Continua