sábado, 29 de abril de 2006

Scott Fitzgerald e barcos na correnteza


Cada geração tem os escritores que merece. Aqueles que nasceram no início do Século XX vivenciaram uma juventude conturbada e cheia de transformações; passaram por períodos de euforia e prosperidade, mas também provaram o gosto do fracasso e da desilusão. F. Scott Fitzgerald também experimentou esses dois extremos. Viveu de modo tão intenso que alguns críticos afirmam que ele não conseguiu ter o distanciamento necessário para descrever sua era com mais racionalidade e sem arroubos passionais. Pode ser que haja um pouco de verdade nessa observação, mas é inegável que ele conseguiu captar o espírito de sua época como poucos.

Francis - seu prenome oculto - nasceu em 1896 numa cidadezinha no norte dos E.U.A. Sua família era abastada, o que ajudou a ele ingressar em uma boa universidade, a de Princeton. Contudo, revelou-se um péssimo aluno e não tinha o menor interesse pelos estudos. Seu primeiro livro, "This side of paradise", foi publicado em 1920 e de cara alcançou grande êxito. O país celebrava seu triunfo na Primeira Guerra, a economia crescia aos saltos em meio a uma febre de consumismo. Fitzgerald se tornou o ídolo da "lost generation", a juventude que não aderiu a esse comportamento. Devido à Lei Seca, que perdurou por toda a década, as pessoas partilhavam uma atitude transgressora, uma rebeldia que foi a semente do movimento beatnick. Casa-se com Zelda Seyre e vê sua fama e riqueza aumentarem rapidamente. Em 1922 publica um livro de contos "Tales of the jazz era", um título muito apropriado devido à paixão que ele nutria por esse gênero musical. No mesmo período surgem outros dois escritores tão relevantes quanto ele: William Faulkner e Ernest Hemingway - este último chegou a confessar que a genialidade de Fitzgerald o inibia de tal forma que ele se sentia incapaz de escrever quando estavam juntos. No mesmo ano publicou uma novela que foi um fracasso total, o que levou-o a experimentar outros formatos, dedicando-se ao teatro.

Em 1924 vai para a França em busca de inspiração para mais um romance. Aí nasceu "O Grande Gatsby" sua obra mais conhecida. Ambientado em lugares sofisticados, o livro retrata uma geração alienada, hedonista e inconsequente, cujo objetivo maior era permanecer jovem e rica para sempre. Belas mulheres, jazz, bebida, riqueza e elegância são a tônica da obra, romântica e algo melancólica, uma releitura do mito de Peter Pan. Uma obra-prima que nunca perde a atualidade e continua a servir de inspiração para escritores que visam retratar sua época.

O fim da década é marcado pela morte do ideal desta geração, sua "Terra do Nunca" é erodida pelo crash da bolsa, do dia para a noite milionários vêem sua fortuna desaparecer. Como uma espécie de síntese do ciclo de ascensão, glória e decadência vivido por seus contemporâneos, a vida de Fitzgerald também entra em crise, vitimada pelo alcoolismo e pela crescente insanidade de sua esposa, que acabou falecendo em um hospício. Publicou ainda "Suave é a noite" e em 1940 começa a escrever "O Último Magnata", mas vem a falecer neste mesmo ano, sem concluí-lo.

Por que escrever sobre ele? Sempre me identifiquei com seu estilo que mescla um triste sentimento nostálgico com uma ironia finíssima e uma profunda compreensão da alma humana e suas contradições. Mas o que despertou meu interesse foi uma frase sua citada na série de tv "Empire Falls":

"So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past."

Acho que ele quis dizer que somos barcos, e a vida, um rio; para evoluirmos e crescermos temos que remar contra a correnteza, uma força que incessantemente nos atrai para o passado e nos impele a cometermos os mesmos erros... os personagens de Fitzgerald muitas vezes são como crianças grandes, incapazes de lidar com os problemas da vida adulta.

Há poucos dias assisti "Sobre meninos e lobos", um filme cujo âmago se assemelha bastante a essa frase, sem falar no título original: "Mystic River". A vida dos três personagens principais é arruinada ainda em sua infância, no dia em que um deles é abusado por um pedófilo. Ali acabou sua inocência e seus sonhos foram sepultados, ali iniciou-se uma vida irreal. Um deles diz algo como suas verdadeiras "personas" ainda são crianças no porão de um prédio fazendo grandes planos. E tudo que aconteceu depois daquele dia não é nada além de um sonho ruim, num mundo injusto e carente de sentido. Sofrem uma grande violência e são incapazes de superá-la, tornando-se eles próprios agentes da violência. Numa das últimas imagens o foco volta-se para a calçada, que fora cimentada naquele dia e onde os então garotos escreveram seus nomes. Contudo, um deles não chega a terminar de escrever, o pedófilo aparece antes. Antes de deixar sua marca no mundo, é brutalmente arrancado da infância e jogado na crueldade e desesperança de um adulto que nunca chegou a conhecer o amor.


Voltemos a Fitzgerald. Sua visão amarga da vida reflete-se em outras citações geniais:

"Show me a hero and I´ll write you a tragedy."

"In a real dark night of the soul, it´s always three o´clock in the morning, day after day".
Na noite escura da alma, são sempre três da manhã, dia após dia. Céus, como ele era depressivo!

Por outro lado, Fitzgerald soube sintetizar a existência com uma concisão e compreensão inigualáveis:

"All life is the progression towards, and the recession from, one phrase: I love you".
No fim das contas, a vida pode ser resumida como um eterno processo em direção à capacidade de amarmos o outro, ou pelo contrário, um movimento que nos afasta desse sentimento.

terça-feira, 25 de abril de 2006

Muito talento e pouco reconhecimento - Parte 5




Stephen Fry: Adoro comédias e humoristas ingleses. Os caras do Monty Python para mim são semi-deuses, não me canso de rever "O Sentido da Vida" e "Monty Python e o Cálice Sagrado". Fry, pelo que sei, nunca fez parte do grupo, mas isso não o impediu de construir uma carreira repleta de papéis interessantes. Ele começou na tv inglesa, em ótimas séries humorísticas como "Blackadder" e "A Bit of Fry and Laurie"(passavam há muito tempo no multishow, o primeiro tinha também o idiota Rowan Atkinson no elenco, no outro co-estrelava com Hugh Laurie) , mas infelizmente nunca teve o devido reconhecimento no cinema, o que resultou em poucos filmes de destaque. Podemos citar "Um peixe chamado Wanda", "Wilde" (excelente biografia de Oscar Wilde, interpretado por Fry, que revela-se muito talentoso também em papéis dramáticos) e "Assassinato em Gosford Park" (um dos últimos filmes de Robert Altman, excelente). Eventualmente ele foi tentar a sorte em Hollywood e fizeram com ele o que costumam fazer com bons atores estrangeiros, insultando sua inteligência e talento com papéis unidimensionais em tramas convencionais. Botaram o coitado como Juiz no filme das Spice Girls! Mais recentemente fez o narrador em "Hitchhiker´s Guide to the Galaxy", trabalhou em "Life and Death of Peter Sellers" (ainda não lançado, Geoffrey Rush fará o papel-título) e em "V de Vendetta", que estou afim de ver.

sábado, 22 de abril de 2006

Fotojornalismo

Mais uma vez inicio um post com um pedido de desculpas pelas minhas prolongadas ausências, assim como também gostaria de agradecer a todos que têm comentado.

O que vem a seguir é a antítese das imagens que costumo publicar. Coisas que apesar de sua natureza repulsiva (ou por causa dela) foram escolhidas como a foto jornalística do ano através de um concurso promovido desde 1955. Ao clicar nas fotos para copiá-las deparei-me com um educado pedido para não fazê-lo. Paciência. Não estou ganhando nada copiando fotos protegidas por copyright, não estou prejudicando o site de modo algum, de fato estou fazendo o oposto, ajudando em sua divulgação e creditando as imagens. De modo que a meu ver não há nada de errado no meu procedimento. Elas podem ser vistas no endereço http://www.worldpressphoto.nl.

Vietnã, 1965. Mãe e filhos atravessam rio fugindo de bombardeio norte-americano. Acreditem, há várias fotos do conflito no site, algumas bem famosas, essa é uma das mais desconhecidas e a mais light. Foto de Kyoichi Sawada



Talvez eu delete este post. Obviamente, isso não é a matéria do sonho de ninguém, muito pelo contrário. Ao mesmo tempo, não quero ter um blog escapista que fala só de coisas agradáveis como cinema, música e uns contos pretensiosos. Essas coisas aconteceram em lugares distantes daqui, aparentemente não temos a menor relação com elas, mas mesmo assim acho importante não esquecê-las. Porque independente do momento ou lugar, as causas são sempre as mesmas. Para que não se repitam. Infelizmente, estamos lidando aqui com eventos que se deram há 20 ou 30 anos e boa parte dessas atrocidades continuam acontecendo.


Santiago, Chile, 11 de setembro (?!) de 1973. O presidente Salvador Allende poucos minutos antes de sua morte, no golpe militar que levou Pinochet ao poder e teve amplo apoio da CIA. Foto anônima, o autor corria risco de vida.


África do Sul, 1977. Multidão protestando contra a demolição de suas casas foge das bombas de gás lacrimogênio atiradas pela polícia. Vi um documentário que mostrou um caminhão cheio de homens brancos com rifles entrando num gueto e atirando a esmo nos negros indefesos que os circundavam. Acho que nunca vi algo tão abominavelmente sádico. Foto de Leslie Hammond.


Uganda, 1980. Menino faminto e missionário. Foto de Mike Wells.


Bhopal, India, 1984. Corpo de criança vítima do vazamento de gás venenoso da indústria química Union Carbide. Foto de Pablo Bartholomew. Um dia ainda vou falar desta tragédia, me lembro quando aconteceu, eu tinha 9 anos.


Praça da Paz Celestial, Pequim, China, 1989. Clássica: manifestante encara tanques do "Exército Popular de Libertação" ( impossível nome mais hipócrita). Comentário do autor Charlie Cole: "Se esse garoto vai dar a vida pelo protesto tenho a responsabilidade de registrar a foto". Até hoje o governo chinês ainda não admitiu a existência deste suposto massacre.

quinta-feira, 6 de abril de 2006

Jane Elliott também tem um sonho

Antes de tudo, gostaria de explicar minha ausência: meu computador sofreu um curto-circuito causado por um raio e foi pro espaço. Escrevo de uma lan house e me esforço para concentrar, tarefa árdua, visto que estou cercado de adolescentes histéricos matando uns aos outros virtualmente(?).
Mas vamos ao que interessa: no último post prometi falar de duma tal Jane Elliott. Uma leitora já sacou quem é (pô, Bia, estragou o clima de suspense que eu quis criar). Mas quero dar mais detalhes. Para isso, vamos imaginar que estamos entrando num túnel do tempo - coisa mais clichê... - e regressando à loucura revolucionária do summer of love de 68 no E.U.A. Você sai do túnel e vê que foi transportado para uma típica cidadezinha americana. A data é 4 de abril de 68. Enquanto caminha pela Church Street, a rua principal, você percebe que aqui não há negros. Em seguida você chega na escola primária local e através de uma janela dá uma espiada numa sala de aula. Adivinha quem é a professora? A própria, Dona Jane. Como boa expoente de sua geração, ela se preocupa com temas como igualdade racial, conceito que coloca a América em ebulição nesse momento: protestos, confrontos, violência, sobretudo nas regiões mais conservadoras. E como falar em racismo para uma classe composta majoritariamente de WASPs (white, angle-saxon, protestant)?
Voltemos à nossa exploração além do espaço-tempo. Deixamos de observar a aula da Tia Jane porque notamos um rebuliço à nossa volta: pessoas andam prá lá e prá cá falando alto e discutindo exasperadamente, muitas escutam seus rádios atentamente, grupos se aglomeram ao redor de tvs. O que houve, você pergunta a um transeunte. Você não sabe? Martin Luther King acabou de ser assassinado. Seu olhar se volta para a sala de Jane: ela acabou de ser informada da tragédia, e visualmente abalada, cancela a aula naquele momento.
Jane ainda não sabe disso, mas esse evento provocaria uma guinada em sua vida que a transformaria numa das figuras mais polêmicas de seu país. Chocada com a crescente brutalidade nos conflitos raciais, ela se sente na obrigação de contribuir de algum modo na educação de seus alunos para que eles não se tornem racistas como boa parte de seus pais, quebrando a corrente da intolerância e da estupidez. Uma coisa já estava clara: a tarefa seria difícil, implicaria em bater de frente com os paradigmas incutidos naquelas crianças desde sua mais tenra idade.
Naquela noite nos a acompanhamos até sua casa e vemos que ela passa a noite em claro. No dia seguinte vamos com ela até a escola e no início da aula ela anuncia que hoje os alunos fariam um exercício diferente. Ela apresenta aos alunos uma tese absurda, mas fundamental para a realização do exercício: a cor dos olhos determina se você é inferior ou superior. Quem tem olhos azuis é mais inteligente, mais rápido, tem mais chances de se dar bem na vida. Aqueles com olhos castanhos são invariavelmente burros, preguiçosos e pouco confiáveis. A turma foi dividida de acordo com essa característica e a fim de evitar dúvidas ela colocou um adereço nas roupas dos castanhos - como os nazistas faziam com judeus, ciganos, gays etc. Ao longo do dia, os azuis são bem tratados, ganham privilégios e elogios; enquanto os castanhos eram discriminados a ponto de não poderem usar o mesmo bebedouro dos azuis. A velocidade com que essas mudanças afetam o relacionamento dos garotos é estarrecedora: logo os azuis se transformam em pequenos ditadores, desprezam, subjugam e humilham os castanhos. Estes, por outro lado, se tornam medrosos, tímidos e arredios. Mas isso não é tudo: as crianças introjetam seus novos "papéis sociais" de forma tão profunda que o rendimento acadêmico dos castanhos cai drasticamente, enquanto o oposto ocorre com os azuis. Céus, fiquei abismado particularmente com esse efeito. Como somos vulneráveis e sugestionáveis, quão poderoso é o ambiente na formação do caráter das pessoas!
Permanecemos alguns dias acompanhando a rotina de Jane e testemunhamos quando ela resolve reverter a situação, contando a seus alunos que os cientistas haviam cometido um erro e que na verdade aqueles com olhos castanhos são superiores aos olhos azuis. Mais uma vez presenciamos as mesmas cenas de humilhação, às vezes exacerbadas pelo fato de os castanhos aproveitarem a chance de se vingarem daqueles que os subjugaram. Obviamente, ela finaliza o exercício esclarecendo que aquilo tinha sido apenas uma simulação, que todos eram igualmente inteligentes e capazes não só naquela sala de aula, mas em todo o mundo.
Jane provou, de uma forma mais contundente que ela jamais imaginara, como a discriminação se agarra no fundo de nosso subconsciente tanto pelo opressor como pelo oprimido. Ela não mandou que os alunos se relacionassem diferentemente, disse apenas que eles eram diferentes, e mesmo assim eles quase que no mesmo instante adquiriram padrões de comportamento discriminatórios, provavelmente porque eles já haviam absorvido oum comportamento discriminatório de seus pais ou de outros adultos. Felizmente, ela também provou que o racismo pode ser "desaprendido": aliás, um trecho do documentário que nunca vou esquecer mostra a alegria e alívio das crianças ao jogarem no lixo os adereços que usavam nas roupas e indicavam sua suposta condição inferior.
Agora, imagine um americano branco, louro, olhos azuis, boa situação econômica, e morador de uma dessas cidadezinhas sendo submetido a esse exercício. O documentário mostra caras como esse chorando como crianças no final do exercício e dizendo que nunca imaginaram o que é estar do outro lado da realidade que vivem, o lado do oprimido, do menosprezado, marginalizado. O lado daquele que pensa que a vida é uma festa para a qual ele não foi convidado. Num seminário de duas horas sua concepção sobre a Humanidade muda da água para o vinho. Contudo para ele, o sofrimento acaba com o fim do exercício, mas e quanto a aqueles cujo "seminário" se inicia no momento em que nascem e prossegue até o fim de suas vidas? Francamente, é de pirar, e ao mesmo tempo explica um pouco porque todos os dias ouvimos notícias de atos de violência bestiais, o quanto a vida passou a valer tão pouco, a forma como as virtudes são abandonadas para darem lugar à busca de conquistas materiais a qualquer preço...
Ok, entramos de volta no túnel do tempo, é domingo à noite, estamos um pouco abalados com a aspereza do exercício de Jane. Submeter aquelas criancinhas a um jogo tão cruel... Então você liga a tv e sintoniza no Fantástico para ver umas amenidades e desviar seus pensamentos prá outro lugar. O Bial anuncia a exibição de um documentário: "Falcões". Precisa falar mais alguma coisa?
Obviamente, Jane foi criticada, perseguida, ameaçada, seu filho foi espancado na rua, foi demitida, teve que se mudar mais de uma vez de cidade, mas nunca desistiu de seu Blue Eye Project, até que gradualmente foi obtendo reconhecimento e passou a se dedicar exclusivamente a esses seminários, viajando por todo o país. Suas práticas foram se sofisticando, pois a discriminação não se resume à cor da pele, atinge sua idade ou sua orientação sexual ou religiosa.
O documentário ainda procura aquelas crianças que assistimos serem submetidas ao primeiro dia que Jane aplicou seu exercício muitos anos depois. Eles contam que no mesmo dia foram para suas casas ensinarem seus pais o quanto o racismo é errado, injusto e danoso. Hoje são pessoas mais positivas e sensíveis. E encerra com aquele famoso e maravilhoso discurso de um sujeito que viveu e morreu por um ideal - algo tão raro hoje em dia que é confundido com loucura ou burrice:

Now, I say to you today my friends, even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream. It is a dream deeply rooted in the American dream. I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: - 'We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal.'

Martin Luther King Jr., Speech at Civil Rights March on Washington, August 28, 1963