sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

homens públicos na Res Publica

O Brasil é um paísgeométrico: tem problemas angulares, discutidos em mesas redondas, por bestas quadradas. (anônimo)



É raro eu falar de política ou civismo aqui. Estou, obviamente e mais do que nunca, desiludido e com repugnância dos "homens públicos". Expressão bem hipocratazinha, sobretudo se nos referimos aos políticos brasileiros. Um homem público em geral pode ser muita coisa, nenhuma delas elogiosa, menos público. Vivemos numa Res Publica ("coisa do povo" em latim, eu acho) onde essa coisa é sistematicamente violada, dilapidada, desvalorizada. Seu propósito essencial, na prática, é enriquecer aqueles que têm acesso a ela, à coisa, às tetas. Se sobrar algum, aí terminam aquela caríssima obra pública superfaturada e de péssima qualidade. Relespública.

Desse ponto de vista, nossos protestos por: melhores ruas e estradas, metrópoles mais humanas e mais seguras, escolas e hospitais públicos melhor aparelhados e com bom profissionais etc, soam despropositados. Bem, não exatamente, mas desse modo estamos combatendo apenas o efeito do agente patológico (sugiro mudar a expressão "homem público" por "agente patológico") e não o próprio agente. Antes de mudarmos os fins, mudemos os princípios. A derrubada do Collor foi a última vez em que o povo brasileiro - povo no sentido de esmagadora maioria barulhenta, 150 milhões de pessoas ultrajadas gritando - mostrou estar vivo. Fora isso exercemos nossa cidadania limitando-nos a votar (não vale, é obrigatório) e protestar de forma isolada e cada vez mais resignada, como se não houvesse mais como fazer o Estado servir o cidadão, apenas o cidadão, todo cidadão, indistintamente. Na Argentina, onde também há uma infestação endêmica de agentes patológicos nas esferas públicas, o povo vai bater panela na rua quando tem escândalo, não engole sapo como ocorre no Brasil . Por quê?

Buenos Aires não é limpa como as metrópoles do norte da Europa ocidental. Mas não é hostil com o pedestre nem deixa acumular montanhas de lixo na rua como vemos nos subúrbios do Rio, SP ou BH. Lá você não é engolido por uma cratera de 90 metros nem é vitimado pelas aulas práticas de tiro da polícia ou dos bandidos. As calçadas são mais largas, os sinais, mais respeitados, há uma maior preocupação em conservar fachadas bonitas em vez de sufocá-las com publicidade; espaços públicos mais numerosos, mais amplos e bem conservados. O argentino parece que sacou que a transformação de seu país passa pela transformação de si mesmo. Aqui delegamos a tarefa aos políticos e continuamos jogando lixo na rua, tentando subornar o guarda, pedindo o amigo vereador para fazer tráfico de influência etc. Enquanto isso, o político é o primeiro a sonegar o imposto que ele mesmo criou. Ok, é claro que há exceções na Argentina, como barrabravas do Boca, homens públicos que só pensam no privado (outra sugestão: homens-privada) e gatunos levando a bolsa da filha do Bush, mas qual metrópole não tem torcedores exaltados, políticos imorais ou pickpockets? Acho que dois fatores primordiais e intrinsecamente ligados explicam essa dicotomia: educação e auto-estima.

Posso estar falando bobagem, mas a história da Argentina tem tantos episódios vexatórios quanto a nossa (remember la guerra del Paraguay y las dictaduras militares...). Ainda assim, os argentinos têm a firme convicção que merecem viver em um país melhor e que podem mudá-lo. De forma geral, passaram mais tempo em estabelecimentos de ensino que os brasileiros, e seus professores tiveram formação melhor. Sua taxa de analfabetismo é 5 vezes menor que a nossa. Mesmo a elite brasileira tem uma péssima auto-imagem, mais por vícios culturais que por falta de informação. Conhecimento gera identificação, incrementa conexões. O Caetano passa as (várias) idéias em Sampa:

É que Narciso acha feio Posso
O que não é espelho

E a mente apavora
O que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes
Quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso
Do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas
Nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue
E destrói coisas belas

Da feia fumaça que sobe
Apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas
De campos, espaços
Tuas oficinas de florestas
Teus deuses da chuva

Pan Américas de Áfricas utópicas
Do mundo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
Que os novos baianos passeiam
Na tua garoa
E novos baianos te podem curtir
Numa boa


Noutra música ele cita Sartre:

“aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína


que ao nos visitar, deparou-se com vias, pontes e prédios cujas obras foram abandonadas antes de serem concluídas, tornando-se das mais eloquentes metáforas para o Brasil. A atitude inconsequente, irresponsável, de total desprezo pelo dinheiro do contribuinte e um espírito auto-destrutivo, que não aprende com o passado, maqueia o presente e ignora o futuro.

A cultura pode nos ligar a nossa pátria em campos além dos de futebol. Só se ama o que se conhece e, quanto mais se conhece, maiores são as chances de amar e respeitar. Acho que é simples assim.

Educação de qualidade possibilita o reconhecimento dos lugares que compartilhamos e dos recursos que deveriam priorizar uma melhora definitiva no padrão de vida de quem mais precisa. Gera dignidade. O espaço público deixa de ser de ninguém e vira de todos. A linha que divide direitos e deveres fica mais clara. Uma mudança revolucionária de paradigmas ocorrendo no âmbito individual. Isso faria a diferença.

6 comentários:

Anônimo disse...

Bravo!

Anônimo disse...

O engraçado é que, ontem mesmo, estava pensando sobre essa raiva sem propósito do brasileiro com o argentino.
Irracional e tola.

Você resumiu boa parte do que penso nisso aqui: "o argentino parece que sacou que a transformação de seu país passa pela transformação de si mesmo".

Beijo.

Anônimo disse...

Online também?
:)

Gosto mais dessa. Mais leve, mais organizada.

Bisu.

Anônimo disse...

Respondia àquela sua pergunta.

Anônimo disse...

Respondi sobre o Rousseau.

Tava lendo Os Demônios e me chamou a atenção um diálogo sobre o suicídio... interessante, algo um tanto niilista, eu creio. Talvez eu o transcreva no meu blog, depois.

Falam que o Nietzsche antes de ser internado como louco foi visto beijando um cavalo que estava sendo açoitado... se ele fez isso realmente, repetiu uma cena do Crime e Castigo, em que Ródia (Raskólnikov) bebe uma cachaça e vai durmir debaixo de uma árvore, eu acho, e começa a sonhar... e nesse sonho volta à infância, quando, com pena de um cavalo que havia sido maltratado, beija-o no rosto ensangüentado; é uma cena muito bonita. O bom de livro é que vc imagina a cena sem nenhum erro. Assisti ao filme Perfume, baseado no livro que vc me falou, e uma hora deu pra perceber (pelo menos eu percebi, posso estar enganada), que a mulher franziu a testa qdo já estava "morta".

Anônimo disse...

dormir.

a atriz franziu a testa qdo sua personagem já deveria estar morta. Tô falando da primeira que foi morta pelo carinha lá. (Vc viu esse filme?)

Ô, posta aí. Gosto de ler o seu blog.