domingo, 29 de julho de 2007

Em busca do Velho da Carrocinha de Lenha - Capítulo 1

Chuva e frio, o clima mais propício para o imponderável invadir o real e chutar pra escanteio a mesmice e a previsibilidade. Se as circunstâncias fossem outras, Dario estaria serenamente abraçado com Ângela, acalentando o pensamento acima e olhando as gotinhas rolando pelo vidro, imaginando que elas estavam apostando corrida. Se sentiria quente e aconchegado, numa ilha de conforto cercada por água por todos os lados. Mas naquele momento o frio insidioso penetrava pelas frestas da velha casa de madeira, chegando até os ossos. Mais uma presença indesejada, ele pensa, enquanto observa, com indisfarçada irritação, seu amigo Ivanzão refastelado na poltrona, fumando como chaminé e se queixando dos gatos, da comida, do frio etc.

A situação é tão desconfortável, que, sem pensar muito, ele pega o casaco e declara que vai buscar lenha para a lareira. Uma idéia idiota e irracional, é claro que toda madeira que encontrar vai estar encharcada. Ele ignora os apelos dos dois, e como uma criança teimosa dirige-se para fora da casa. Enquanto sobe as escadas para a garagem percebe que Ângela e Ivanzão vêm atrás, o que o faz lembrar que, por piores que as coisas estivessem, ao menos estava bem acompanhado. Mas está azedo demais para permitir que o pensamento mude sua atitude, então continua galgando os degraus rapidamente, sem esperar por eles.

Os três seguem de carro para uma madeireira nas redondezas. Lá, Dario descobre que as únicas madeiras que poderia se apossar estão no pátio descoberto. Fica sob a chuva olhando os pedaços de compensado molhados. Ivanzão quebra o silêncio: "Tem lenha pra vender, desses velhos de carrocinha". Ouvir aquilo o irrita ainda mais. Velhos em charretes carregadas de toras em pleno Século XXI... "Claro, Ivan, como não pensei nisso! Vou aproveitar e perguntar pro velho se ele tem algum gramofone seminovo pra eu escutar meus discos de 45 rotações, além de um espartilho pra Ângela e um penico, assim não preciso sair das cobertas nas madrugadas geladas se quiser ir no banheiro". Naquele estado de espírito, Dario adora destilar seu sarcasmo. Segue-se uma discussão inútil entre os dois, que invariavelmente resvala no secular "então foda-se", "não, foda-se seu", "não, foda-se você", "então vai se fuder" e assim por diante. A namorada apenas assiste, divertida com os dois marmanjos regressando ao segundo ano primário, com uma ponta de exasperação.

O frio não dá brecha para o orgulho de Dario manifestar, então ele dá o braço a torcer e resolve procurar o velho da carrocinha. Vão para a vila, onde reside boa parte das pessoas que trabalham nos condomínios vizinhos. O centro cultural do lugar é o buteco da esquina, ornamentado por pôsteres da Juliana Paes e do Atlético. Ele entra no bar e tenta disfarçar o desconforto causado pelos olhares dos fregueses medindo-o. Sente-se um intruso, no ar um cheiro quase insuportável de carnes cozidas demais em molhos inexplicáveis. Pede uma jurubeba, como que para mostrar que, afinal, não é tão diferente assim deles. Começa a ensaiar um papo despretensioso com o cara do balcão ("tá frio demais, hein...") mas antes de terminar a frase é interrompido por Ivanzão berrando de dentro do carro pra ele comprar uma coca. A raiva de Dario sobe mais um degrau, ele tem a impressão de sentir o fígado liberando secreções de mau humor, ao mesmo tempo que a jurubeba bate no estômago provocando azia instantânea. Com cara de doente terminal, olha pra Ângela no carro. Ela desce e se junta a ele, logo perguntando pro balconista se ele saberia de alguém que tivesse lenha seca pra vender. O cara coça a cabeça e franze a testa, recorrendo a arquivos empoeirados da memória. "Tinha um senhor que vendia sim. Ô seu Eupídio, lembra daquele homem que tinha um carrinho de lenha?" Seu Eupídio está sentado sozinho numa mesa ao fundo bebendo nova schin. Parece incrivelmente velho, usa óculos de aviador, camisa desabotoada e colares dourados no pescoço. Parece nem ter ouvido, mas depois de um tempo pergunta quem queria saber. "Sou eu quem tá querendo, vou congelar se não conseguir acender a lareira... vocês não sentem frio em casa?" e Dario tenta esboçar um sorriso, pedindo cumplicidade. O balconista fala que tem aquecedor elétrico. Alguém comenta que lareira deixa cheiro ruim. Enfim Seu Eupídio responde, olhando pra Ângela: "Às vezes ele aparecia no bar que tinha antes desse aqui. Era meio cego. Tinha um burrinho que ele tratava como filho, chamava de um nome gozado. Naquele ano que o Galo foi campeão brasileiro o burrico morreu no mesmo dia, ele tomou um porre e não sabia se ria pelo galo ou chorava pelo burro. Já tava bem velho, com certeza bateu as botas". Uma mulher entra na conversa: "O velhinho da carroça? Um que não tem um olho? Pois eu vi ele há pouco tempo saindo da mata com um feixe grandão de lenha nas costas. Não parecia tão velho". Dario mexe os dedos, fazendo contas. O Galo ganhou em 70, 71. Estamos em 2007. E fala: "Não pode ser o mesmo cara, ele já era velho há mais de 35 anos!" Ivanzão enfim entra no recinto: "E aí, comédia? Num falei que ainda tem desses caras? Pede uma coca pra mim." Um motoboy fala que é, sim, o mesmo velho, costumava pescar com seu avô e que inclusive acha que viu ele na estrada anteontem, não estava certo pois quando olhou de novo ele não estava mais lá. O balconista exclama: "Então tá explicado, ele é um fantasma" e o bar todo cai na gargalhada.

Dario acha que estão zombando dele e sai sem se despedir nem agradecer. Ângela é quem o faz e ainda tenta conseguir mais informações sobre o velho caolho. Já está dando partida no carro quando Ivanzão berra de dentro do bar: "Dario! Vai dar o cano no cara?". A azia, em franca expansão, chega incendiando o esôfago. Ângela entra no carro: "Seu Eupídio me falou uma coisa tão estranha... disse que quando a gente parasse de procurar ele ia aparecer." (CONTINUA)

4 comentários:

Lidiane disse...

Como você é rápido pra escrever, lôro.
Queixo caído aqui.

Já dei um monte de risada com a história. Acho que nem imagina...
Pude visualizar as cenas todas. Vou comentar as melhores, tá?
E, adianto que estou ansiosa, esperando a continuação.

Gostei da imagem do Dario e da Ângela (um nome angelical demais, não acha?) aconchegados. Parece bom e me deu inveja.

Dei uma gargalhada imaginando o Ivanzão "refastelado na poltrona, fumando como chaminé e se queixando dos gatos, da comida, do frio". Nunca li nada mais verossímel, mesmo sendo ficção. ;)

O Dario pensando em pegar lenha na chuva é engraçado demais de imaginar. Será que existe alguém tão bobo e friorento? A namorada dele (a tal Ângela) deve gostar mesmo de lareira...

O Ivanzão, no fim, deu uma boa idéia, hum? Afinal, um velhinho na carrocinha é possível de se imaginar.
:P

Acho que a Ângela não iria gostar de um espartilho. Dizem que aperta.
Mas um gramofone combina com uma casa de madeira.

Ivanzão e Dario brigando me fez rir aqui de novo (eu já disse que ri o texto todo, né?)
Só duas crianças grandes e que se adoram para brigar assim. Se fossem pessoas reais, ao invés de personagens, será que eles fariam cara de bravos depois?

Esse "buteco" devia ter poster do América ao invés de poster do Atlético.
:)
Peguei pesado?
risos

O Dario bebeu jurubeba? De onde você tirou essa idéia de "jurubeba"?

Ivanzão dentro do carro berrando e pedindo uma coca me fez engasgar de rir.
Acho que estou boba demais hoje.

E, por fim, adorei o velhinho. Ou a imagem do velhinho.
Ou ainda: a idéia de um velhinho assim. Que só aparece quando não se procura por ele. E o melhor: que flui no tempo e no espaço.
Me lembrou um ditado que tem duas versões:

"Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece"
e
"Quando o discípulo está pronto, o mestre desaparece".

Acho que vou me repetir, mas o texto me fez bem.
Me fez bem ler, rir e viajar na história.

Espero (mesmo) a continuação.

Um beijo sabor Miolo.

Anônimo disse...

Li seu texto/conto agora há pouco. Sai do pc e fui pra sala de tv, fiquei mudando de canal e lembrando de um tempo maravilhoso e mágico que vivi. Dos dias de frio, chuva, céu meio nublado. Enfim, uma paisagem que remeteria qualquer um a um sentimento de tristeza. Só que na época eu olhava o cenário, e a melancolia dele se misturava à alegria, satisfação e aconchego que eu experimentava. Virava uma melancolia boa, gostosa, uma dorzinha agradável, por que não dizer, prazerosa.
Depois, folheando uma dessas revistas de circulação nacional, lapidei uma trecho de uma reportagem que diz mais ou menos o seguinte: o que faz um bom escritor é a capacidade que ele tem de excitar a imaginação de seus leitores. Seu texto produziu em mim esse efeito, excitou minha imaginação e mais, evocou lembranças vivas de um tempo que eu pensei não pudesse mais sentir.
Um abraço.

Anônimo disse...

atacando de contos agora? ou sempre os escreveu e eu que nunca percebi?

saudações.

InVinoVeritas disse...

Li o conto agora. Por acaso o nome do burrinho não seria "Platero"???
;)
Hahahaha... só um chute. Claro, podia ser "Ruço" também, visto que cê gosta de Dom Quixote...
Abração.