quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vai um doping aí?

Olimpíadas e tal. Um achado o Millôr citar um sambinha velho (de um sambista tão genial quanto esquecido, Assis Valente) para dar uma síntese da nossa participação nesse estranho ritual - brincadeiras infantis encaradas com seriedade doentia - que são os jogos: "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor...". Ufanismos à parte, e vai com Deus, Galvão Bueno, um aspecto das Olimpíadas que me chamou mais atenção: o duelo entre os caçadores de doping e os atletas dopados. Uma corrida bem mais interessante que a disparada do não sei quem Bolt.

O Departamento de Defesa dos EUA tem uma Agência de Projetos Avançados que corre atrás do sonho do soldado sobre-humano. Um cara capaz de correr na velocidade do Bolt nos 100 ms por 15 minutos. Ou que permaneça em combate mesmo com feridas mortais. Eles querem um exterminador do presente. Os experimentos com camundongos, que tiveram sua estrutura genética modificada para terem musculatura de atleta, já mostram que, mesmo sedentários, os roedores apresentam 30% a mais de massa muscular que seus pares comuns. Quando entraram na malhação, seus membros dobraram de tamanho. A idéia seria ajudar pacientes com distrofia muscular. Mas já imagino os ratos de academia usando esse troço...


Mas, voltando aos esportes, o próprio COI reconhece que vai sempre estar um passo atrás em matéria de tecnologia de detecção de doping. Há sempre algo novo no mercado que ajude a mascarar os traços das drogas no organismo. A era dos esteróides e anabolizantes já se foi há muito, a trapaça agora se dá por meios genéticos. Um hormônio recém-descoberto, conhecido como EPO, integra-se ao código genético do atleta, tornando-se indetectável.

O que se vê então é uma atmosfera tipo inquisição espanhola. Atletas célebres das mais diferentes modalidades têm seus feitos frequentemente questionados, muitas vezes com razão. Andrei Markovits, professor de política comparativa da Universidade de Michigan, foi enfático: "O cara toma Viagra, antidepressivo, ansiolítico, remédio pra concentrar, pra desconcentrar... só o atleta não pode. E por quê? Devido ao ultrapassado ideal de amadorismo e virtude no esporte - conceitos desenvolvidos pela classe dominante inglesa de Oxford e Cambridge, no século XIX."

A solução para ele seria permitir que todo atleta adulto e sadio tivesse acesso a qualquer substância que julgasse útil, desde que tudo fosse feito através de médicos responsáveis. Não haveria mais esse véu sobre o doping. Ele só faz uma excessão quanto a atletas mais jovens.
Um outro figura vai além. O bicampeão olímpico de esqui alpino, Bode (?) Miller, vaticina: "Não é uma luta do bem contra o mal. Trata-se de igualdade de condições. Se pode tudo, ok. Senão pode nada, ok também. Mas a realidade é que os controles não resultam em igualdade. Quem quer se dopar e passar despercebido tem grandes chances de conseguir." Mandou bem.

Marion Jones perdeu as 5 medalhas amealhadas em Sidney em 2007, num dos casos mais vergonhosos da história olímpica. O embaraço aumentou quando descobriu-se que a segunda colocada em uma das provas também competiu dopada. O pódio tinha era que ficar vazio...

Entramos numa esfera mais ampla. A sociedade endossa a cultura do desempenho. Que seria da civilização ocidental pós-guerra se não fossem as drogas? E me refiro apenas às lícitas - com as ilícitas o papo é outro. Idosos e enfermos se mantêm vivos graças a elas. Se seus avós ou pais de repente ficaram mais felizes, quem sabe não tem o dedo do viagra aí? Quantos milhões de pessoas não recorrem a um lexotan senão não dormem? Então porque o Lance Armstrong não pode tomar umas bolinhas para subir os alpes numa bike mais rapidinho? Stallone só fez o Rocky Balboa aos 61 anos graças ao hormônio de crescimento, o HGH, que, segundo ele, em 10 anos será vendido em farmácias sem receita médica.

Além disso, se há drogas que estimulam o desempenho físico, há também aquelas que dão uma ligadinha nos neurônios. O campeão de poker Paul Phillips usa remédios contra narcolepsia e outro contra distúrbio de déficit de atenção; já ganhou US$2,3 milhões. Integrantes de orquestras tomam beta-bloqueadores, pilotos de avião têm seu aparato e qual estudante nunca tomou um rebite na véspera da prova?

Você, que é jornalista, professor, advogado, sei lá, tomaria uma droga prescrita por um médico que fosse capaz de torná-lo mais eficiente, mais produtivo, ou mesmo mais lúcido? Quem não compraria a pílula da memória?


Por outro lado, toda substância que ingerimos que de alguma forma altera nossas funções vitais não estaria nos afastando do que somos fundamentalmente, com qualidades e defeitos e todas as idiossincrasias? Os antigos não tinham vidas melhores que as nossas sem toda essa porcariada? Francamente, essa idéia, além de utópica, vai na contra-mão da história. Concordo que o arsenal de substâncias que os laboratórios colocam à nossa disposição é exagerado, inconsequente, muitas vezes supérfluo. Junto com os alimentos modificados que ingerimos e o ar poluído que respiramos, continuamos evoluindo, só que - do mesmo jeito que estamos fazendo com o planeta - numa velocidade muito mais rápida. Como serão nossos netos e bisnetos? Criaturas mais capazes, com vidas mais longas e proveitosas, graças às drogas? Ou se aproximariam de autômatos, supereficientes, mas desconectados de suas emoções? O eterno Deus Mu dança...

Obs: agradeço à Piauí de agosto, pelo menos meio post veio dela.

Um comentário:

TVLIGADA disse...

Bruno, seu blog tá fantástico! Seu talento me encanta, velho! Vc é um cronista maravilhoso, um jornalista mais do que pronto e de alto nível! Num vou ficar te lambendo aqui não pq eh a maior merda! Me deu uma vontade de dar umas blogadas, então criei o tv-ligada (comigo num tem jeito rss), mas lendo o seu blog me sinto uma criança engatinhando de fraudas, mas me regozijo em degustar do seu talento em textos tão brilhantes, que revelam toda a imensidão da sua vocação (nos possíveis sentidos mais intrínsecos da palavra).
Não considere isso um post (comentário) se quiser apagar td bem.
Abração,
Anderson