I. Fuck na História, fuck na TV, fuck a política
É comum na língua inglesa o som das palavras se parecer com seu significado, como splash (molhar) ou crash (colidir). Fuck não é exatamente uma onomatopéia, mas o som da palavra - simples, conciso, direto, algo agressivo - combina com o que ela representa. É até gostoso de falar.
Pois eu e os norte-americanos temos uma tendência de voltar nossa atenção para coisas pouco importantes, como a questão do banimento de uma palavra do léxico de toda uma língua. Os defensores da idéia são os mesmos wasps, republicanos e intolerantes em geral. Mas sempre tem algum cabeludo pegando no pé deles, graças a Deus. Veja você: fizeram um documentário inteiramente dedicado a essa polêmica palavrinha de 4 letras. De onde ela veio? É lícito proferi-la na TV? E em casa? Se falar Deus castiga? (Êta falta do que fazer... protesta meu ombudsman.)
A origem do vocábulo é controversa. Se você já ouviu de algum sabichão que fuck é um acrônimo de "Fornication Under Consent of the King", uma plaquinha que as autoridades afixavam na porta da casa de algumas famílias na Inglaterra medieval, permitindo a prática do sexo, saiba que essa historinha foi inventada pela Playboy nos anos 70. Na verdade ninguém sabe de onde veio. Um cara até falou que foi a primeira palavra da língua ancestral que veio a se tornar o inglês. Pode até ser, visto que além de seu significado original, a palavra pode ser empregada de várias outras maneiras, como o nosso "que merda!" (what a fuck!) ou "cadê a porra da chave?" (where is the fucking key?).
Numa sociedade repressora e paranóica como a americana, criou-se uma grande celeuma em torno do emprego da palavra nos meios de comunicação de massa, polarizando opiniões e inflamando debates. Fuck é, talvez, o único palavrão "espacial", pois já foi à Lua através de um comentário do astronauta Buzz Aldrin e mesmo o grande guardião do conservadorismo americano, o Presidente Bush, já a proferiu na frente das câmeras. Ainda assim, fuck permanece um tabu nas TVs abertas do Tio Sam. Podia ser pior, não fosse a audácia de bravos desbocados, como o stand up comedian - humorista tipicamente americano que entretém a platéia sozinho em bares e night clubs - Lenny Bruce. Foi preso 5 vezes por falar fuck em seu show. Eram shows fechados, para maiores de 18. Se Lenny não tivesse existido, teria que ser inventado. Foi ele quem peitou os juízes e insistiu em seu direito de livre expressão garantido pela Constituição. Afinal, gritar fuck ou foda-se não deixa de ser um ato de libertação.
Eram tempos conturbados. Soldados americanos voltando do Vietnã em body bags, ou crianças vietnamitas derretendo com napalm pareciam ser menos obscenos que dizer fuck.
Acho que aqueles que são contra o fuck estão confundindo lei com moralidade. Em 2003 Bono Vox falou fuck em seu discurso de agradecimento pelo globo de ouro, ao vivo, para milhões. A imprensa marrom de sempre viu aí uma polêmica rentável; e cobrou-se das autoridades uma explicação. Fala palavrão na tv e sai ileso? O governo argumentou que naquele caso a palavra não estava sendo usada num sentido obsceno. Mas uma tal comissão de pais em defesa da moral e bons costumes, ou algo assim - republicanos de ultra-direita - fez as autoridades voltarem atrás e condenarem publicamente a fala de de Bono, além de multá-lo. Enquanto isso, na Noruega, uma banda hardcore promove sessões de sexo explícito em seus concertos a fim de chamar a atenção para o aquecimento global. Faz sentido.
Será que as criancinhas, que se arrependem amargamente por terem dito fuck, temendo um castigo divino, teriam alguma razão? A pergunta soa tola e infantil, mas tem muito cristão fanático que acha que sim. Tavez porque Deus seja uma entidade assexuada, não há uma "Sra. Deus". Então se ele não fode, provavelmente não se sente à vontade com a palavra que ele é incapaz de praticar.
"Se o Presidente não pratica a "f-word" com a esposa, fatalmente o fará com o país."
Mel Brooks
O supra-sumo da hipocrisia ocorreu quando o vice do Bush, Dick Cheney, falou fuck yourself a um senador democrata, em pleno Congresso, os "paladinos da moral" não deram um pio.
II. Fuck na Família e o que há por trás disso
Uma das maiores catástrofes que pode ocorrer numa típica família ianque é o filho menor aprender a palavra fuck. Em sua visão paranóico-fatalista, seria o primeiro passo para uma vida de crime, vício, imoralidade, vergonha etc. Dizem que essas mesmas famílias não querem ouvir palavras de baixo calão nos filmes, mas uma baboseira intitulada "Meet the Fockers" fez um sucesso estrondoso.
Tudo isso, ou quase tudo, vem de um documentário que vi na HBO. Cultura inútil total, mas bem dirigido, com depoimentos interessantes. E é dedicado a meu ídolo Hunter S. Thompson, o criador do gonzo journalism, que mescla o objetivo com o subjetivo,vai além da simples notícia, tem toques literários, é sarcástico, irreverente, por vezes narra as histórias em primeira pessoa; entre estilo e precisão, prefere o primeiro. No depoimento que ele presta no doc, mostra-se preocupado com os rumos que a política e a sociedade americana estão tomando. A multa para quem disser fuck na tv aumentou em 10 vezes. Alguns congressistas lutam para estender a proibição para a tv paga. O radialista Howard Stern, conhecido por sua total falta de vergonha e posturas liberais, foi obrigado a transmitir seu programa via satélite para acabar com a perseguição constante que sofria, inviabilizando seu trabalho. Felizmente, a censura ainda não chegou ao espaço.
O pior de tudo não é a força e a intensidade da onda conservadora que tornou os americanos ainda mais intolerantes, arrogantes, moralistas e bitolados. O problema é a politização dos parâmetros que regulam o uso da palavra. Por exemplo: "fuck Iraq" ou "fuck the muslims" têm mais chances de passarem batido que "fuck the president" ou "fuck the american way of life", ou ainda "fuck the Cadillacs". Menos de um ano depois que Bono falou seu fuck, exibiram na tv aberta "O Resgate do Soldado Ryan". Há 21 fucks no filme. A FCC (Federal Communications Commission) a agência estatal que dita o que pode e o que não pode passar na tv, não considerou sequer um fuck ofensivo, o filme passou sem cortes.
Antes de adotar uma postura repressora em questões que envolvam liberdades individuais, não podemos nos esquecer que o que já foi tabu no passado, como a mulher desquitada buscar um novo amor ou a igualdade de raças são fatos inquestionáveis hoje em dia. Quem lutou por esses direitos hoje luta por mais liberdade nos meios de comunicação de massa. Como disse Voltaire:
"Posso não concordar com uma só palavra que você disse, mas lutarei até a morte pelo seu direito de expressá-la." Ou algo parecido.
A questão do tal "livre-arbítrio" é espinhosa. O leitor(a) pode me botar contra a a parede: seria "liberal" permitir que pessoas alcoolizadas conduzam veículos ou apenas estupidez?
O fato é que por trás da polêmica do fuck, a pergunta fundamental é: a Humanidade já é madura o suficiente pra que se permita que cada um exerça de forma incondicional seu livre-arbítrio? Infelizmente, é óbvio que não. Ainda somos a mesma criança amedrontada de milhares de anos atrás. Uma criança que teme, acima de tudo, a si mesma, e que por isso ainda se apega às leis mais primitivas, como o vergonhoso "olho por olho" de Hammurabi. Parece que somos o pai de nós mesmos repetindo: tire os cotovelos da mesa, mastigue de boca fechada e não fale palavrão. Tememos um castigo. Qual seria ele?