Em Busca do Velho da Lenha
Parte 1
I
Chuva e frio, o clima mais propício para o imponderável invadir o real e chutar pra escanteio a mesmice e a previsibilidade. Se as circunstâncias fossem outras, Dario estaria serenamente abraçado com Ângela, acalentando o pensamento acima e olhando as gotinhas rolando pelo vidro, imaginando que elas estavam apostando corrida. Se sentiria quente e aconchegado, numa ilha de conforto cercada por água por todos os lados. Mas naquele momento o frio insidioso penetrava pelas frestas da velha casa de madeira, chegando até os ossos. Mais uma presença indesejada, ele pensa, enquanto observa, com indisfarçada irritação, seu amigo Ivanzão refastelado na poltrona, fumando como chaminé e se queixando dos gatos, da comida, do frio etc.
A situação é tão desconfortável, que, sem pensar muito, ele pega o casaco e declara que vai buscar lenha para a lareira. Uma idéia idiota e irracional, é claro que toda madeira que encontrar vai estar encharcada. Ele ignora os apelos dos dois, e como uma criança teimosa dirige-se para fora da casa. Enquanto sobe as escadas para a garagem percebe que Ângela e Ivanzão vêm atrás, o que o faz lembrar que, por piores que as coisas estivessem, ao menos estava bem acompanhado. Mas está azedo demais para permitir que o pensamento mude sua atitude, então continua galgando os degraus rapidamente, sem esperar por eles. Azedo e com azia.
Os três seguem de carro para uma madeireira nas redondezas. Lá, Dario descobre que as únicas madeiras que poderia se apossar estão no pátio descoberto. Fica sob a chuva olhando os pedaços de compensado molhados. Ivanzão quebra o silêncio:
"Tem lenha pra vender, desses velhos de carrocinha". Ouvir aquilo o irrita ainda mais. A azia queima, labaredas no duodeno. Velhos em charretes carregadas de toras em pleno Século XXI...
"Claro, Ivan, como não pensei nisso! Vou aproveitar e perguntar pro velho se ele tem algum gramofone seminovo pra eu escutar meus discos de 45 rotações, além de um espartilho pra Ângela e um penico, assim não preciso sair das cobertas nas madrugadas geladas se quiser ir no banheiro".
Naquele estado de espírito, Dario adora destilar seu sarcasmo. Segue-se uma discussão inútil entre os dois, que invariavelmente resvala no secular "então foda-se", "não, foda-se seu", "não, foda-se você", "então vai se fuder" e assim por diante. A namorada apenas assiste, divertida com os dois marmanjos regressando ao segundo ano primário, com uma ponta de exasperação.
O frio não dá brecha para o orgulho de Dario manifestar, então ele dá o braço a torcer e resolve procurar o velho da carrocinha. Vão para a vila, onde reside boa parte das pessoas que trabalham nos condomínios vizinhos. O centro cultural do lugar é o buteco da esquina, ornamentado por pôsteres da Juliana Paes e do Atlético. Ele entra no bar e tenta disfarçar o desconforto causado pelos olhares dos fregueses medindo-o. Sente-se um intruso, no ar um cheiro quase insuportável de carnes cozidas demais em molhos inexplicáveis. Pede uma jurubeba, como que para mostrar que, afinal, não é tão diferente assim deles. Começa a ensaiar um papo despretensioso com o cara do balcão ("tá frio demais, hein...") mas antes de terminar a frase é interrompido por Ivanzão berrando de dentro do carro pra ele comprar uma coca. A raiva de Dario sobe mais um degrau, ele tem a impressão de sentir o fígado liberando secreções de mau humor, ao mesmo tempo que a jurubeba bate no estômago, labaredas no duodeno é um nome legal para uma gangue de motoqueiras lésbicas ou uma banda de punk rock industrial. Ele se refugia em pensamentos obscuros quando a realidade incomoda. Uma canção do Tom Petty, cadê aquele cd? It´s good to be king/ And have your own world/ It helps to make friends/ It´s good to meet girls. Girls... fica feliz ao ver Ângela sorrindo dentro do carro. Olha pra ela como Homer Simpson olha para um donut. Ela desce e se junta a ele, logo perguntando pro balconista se ele saberia de alguém que tivesse lenha seca pra vender. O cara coça a cabeça e franze a testa, recorrendo a arquivos empoeirados da memória.
"Tinha um senhor que vendia sim. Ô seu Eupídio, lembra daquele homem que tinha um carrinho de lenha?"
Seu Eupídio está sentado sozinho numa mesa ao fundo bebendo nova schin. Parece incrivelmente velho, usa óculos de aviador, camisa desabotoada e colares dourados no pescoço. Parece nem ter ouvido, mas depois de um tempo pergunta quem queria saber.
"Sou eu quem tá querendo, vou congelar se não conseguir acender a lareira... vocês não sentem frio em casa?" e Dario tenta esboçar um sorriso, pedindo cumplicidade, achando que o cara parece uma versão mais acabada do Tommy Lee Jones. Os 3 Enterros de Melquíades Estrada é um filme lindo... O balconista fala que tem aquecedor elétrico. Alguém comenta que lareira deixa cheiro ruim. Enfim Seu Eupídio responde, olhando pra Ângela:
"Às vezes ele aparecia no bar que tinha antes desse aqui. Era meio cego. Tinha um burrinho que ele tratava como filho, chamava de um nome gozado. Naquele ano que o Galo foi campeão brasileiro o burrico morreu no mesmo dia, ele tomou um porre e não sabia se ria pelo galo ou chorava pelo burro. Já tava bem velho, com certeza bateu as botas". Dario volta à realidade e pergunta: "Hã?". Uma mulher entra na conversa:
"O velhinho da carroça? Um que não tem um olho? Pois eu vi ele há pouco tempo saindo da mata com um feixe grandão de lenha nas costas. Não parecia tão velho". Dario mexe os dedos, fazendo contas. O Galo ganhou em 70, 71. Estamos em 2007. E fala:
"Não pode ser o mesmo cara, ele já era velho há mais de 35 anos!" Ivanzão enfim entra no recinto:
"E aí, comédia? Num falei que ainda tem desses caras? Pede uma coca pra mim."
Um motoboy fala que é, sim, o mesmo velho, costumava pescar com seu avô e que inclusive acha que viu ele na estrada anteontem, não estava certo pois quando olhou de novo ele não estava mais lá. O balconista exclama:
"Então tá explicado, ele é um fantasma" e o bar todo cai na gargalhada.
Dario acha que estão zombando dele, mata a jurubeba e sente as chamas atingirem o canal pilórico. Imagina um plantão do JN cobrindo o incêndio em suas vísceras. "Uma unidade de bombeiros alka seltzers já estão a caminho" e sai sem se despedir nem agradecer. Ângela é quem o faz e ainda tenta conseguir mais informações sobre o velho caolho. Já está dando partida no carro quando Ivanzão berra de dentro do bar:
"Dario! Vai dar o cano no cara?".
A azia, em franca expansão, chega incendiando o esôfago. Ângela entra no carro:
"Seu Eupídio me falou uma coisa tão estranha... disse que quando a gente parasse de procurar ele ia aparecer."
II
Dario toma um pepsamar que achou embaixo do banco e fala:
"Genial. Tamos procurando tipo um Mestre dos Magos budista, que finalmente saiu da caverna do dragão e descola um troco vendendo lenha. Faz sentido. Mas achei o marketing dele meio ultrapassado."
Ângela, ri, talvez menos por achar graça que para demonstrar carinho. Estão voltando do buteco, a noite já caiu. Dario tenta entrar na jogada e pensa: ok, quando menos esperarmos, lá estará o velho da carroça. Então vou passar a agir instintivamente. Por exemplo: no próximo cruzamento, em vez de virar à direita, como sempre faço, é o caminho de casa, vou pra esquerda. Ivan e Ângela, mesmo conhecendo pouco o lugar, sentem que não estão indo pra casa. Dario expõe sua teoria. A namorada, com o bom humor habitual, acha a idéia boa, não se queixa da fumaça de cigarro no carro todo fechado - está chovendo - nem do cd que fica pulando nas ruas esburacadas. Ivan chama Dario de louco, reclama da dor no pescoço e pergunta se não podem, em vez disso, dar um pulo no Epa para ele comprar leite e salsicha pros sobrinhos. Dando conta do ridículo da situação, entrando em ruas sem saídas, aguçando a mente pra "voz do inconsciente", Dario desiste e sugere:
"Vamos pegar a estrada, onde o asfalto é mais liso e dá pra ouvir cd".
Seguem na MG-10, sentido Rio Acima. Ivan pergunta se não tem uma música menos barulhenta, é Soundgarden. Pula umas faixas e começa a tocar "I will always love you", do Cure. Ivan diz que a música trás boas memórias e fica cantando a letra toda errada. Ângela e Dario dão risada. Aí Ivan começa a contar uma história de amor com toques surreais. Curiosamente, a azia de Dario passou.
A história fica pra depois. Convidam Ivan pra ver um filme com ele em casa. Não, não quer segurar vela. E vai embora. Inté.
A casa está como uma câmara frigorífica. Dario é acometido por uma angústia instantânea, é um cara complicado. Liga a tv na globonews e a mulher séria com seus óculos faz uma cara de adepta do sadomasoquismo e declara que a frente fria vai permanecer no sudeste por ao menos mais uma semana, ela e seus amigos: deslizamento de barreira, caos nos aeroportos, barracões soterrados, the whole shabang. A obsessão de Dario em aquecer a namorada leva-o a um ato extremo, inédito:
"Vou ligar pros velhinhos do Bebê de Rosemary".
"Quem?"
"Meus vizinhos, um casal de idosos que nunca vejo. Eles têm um quê de sinistro, daí o apelido. E eles têm uma pilha enorme de lenha sequinha, já vi".
Que merda, não tinha o telefone deles. Resolve visitá-los com a cara e a coragem. Ensaia um dialogozinho no caminho, inventa agravantes.
Tocou a campainha 3 vezes e já ia desistir quando uma velhinha abriu a porta.
"Dona Antonieta, boa noite! A senhora parece ótima, esse xale caiu bem. Desculpe incomodar desse jeito, mas é que..."
E assim por diante. Chamou-a pelo nome errado. Olhando aquele rosto na noite chuvosa, Dario poderia jurar que ela e o marido estavam criando o bebê filho do demônio que roubaram da Mia Farrow. Na sua cabeça tocava a musiquinha do filme. Nada de lenha. Velha mesquinha...
Volta pra casa puto e deprimido. A chuva volta com mais força. Os cães fazem festinha e ele os ignora. Vive um daqueles momentos que o superego o coloca no banco dos réus, como promotor, começa a desfiar o rosário de erros, atos egoístas e tudo de ruim que Dario já tinha feito. "Preciso voltar a fazer análise."
"Meritíssimo, na noite de 16 de julho, dia do aniversário do namoro do acusado com sua companheira, o que ele fez? Alguma idéia, membros do júri? Flores, poemas...? Que nada! Não, o réu ignorou-a friamente e ficou vendo tv, e notem, ele via o filme "The Running Man - O Sobrevivente", com o Arnold Shunashunega. Pasmem. Enquanto isso, sua doce namorada estava sozinha na cama".
O advogado de defesa protesta.
"Overruled", diz o juiz (o julgamento é gringo). Em seguida ele dá a sessão por encerrada naquele dia. À boca pequena diz-se que, devido às acusações anteriores, será difícil o réu escapar da condenação por crime de Não-Viver. Seu advogado tenta tranquilizá-lo:
"o promotor só queria pôr lenha na fogueira".
Dario tenta rir de si mesmo, cada idéia, mas não consegue. Sobe, deita-se com Ângela, abraçando-a. Quando está quase dormindo, ela começa a gritar, como num pesadelo. Não consegue acordá-la e sem saber o que fazer, começa a gritar junto. Enfim ela acorda. Ouvem um tropel de cavalo. Ele levanta-se e olha pela janela. Está escuro, mas vê uma figura aparentemente jovem numa carroça carregada de lenha. São duas da manhã.
III
Dario diz que vai na cozinha comer algo, em vez disso põe uma calça de moletom e um sobretudo e sai pra rua pra achar o cara na carroça. Nem sinal dele. Impelido pela obsessão, já no limite com a insanidade, Dario simplesmente sai andando a pé na direção que a carroça seguia, dane-se o fato de estar descalço e da chuva ter voltado a cair. Eis que...
(um parênteses para externar um dilema do autor. Deveria a história seguir o curso que escolheu ou não seria mais legal ele deixar a decisão a cargo do leitor? Lembram daqueles livros "escolha sua aventura"? "Se você disser ao vampiro que na carótida tá ok, vá à pagina 23; se por outro lado jogar nele o dente de alho, pule para a 25." Ok, vou fazer isso.)
Opção 1
...depois de meia hora de caminhada, Dario avista a carroça, vazia, sem ninguém. Próximo a ela há uma tenda, que parece ter sido concebida exatamente para aquilo: um círculo de pessoas cantarem ao redor de uma fogueira executando uma dança bizarra, meio tribal, meio qualquer coisa. Tochas iluminam os limites externos da tenda, a luz bruxuleante mostra algumas pessoas nuas, outras vestem indumentárias de sacerdote; o clima místico é quase palpável. O cântico se assemelha a um alcalóide auditivo, se é que isso existe. Uma energia estranha emana daquele ritual no meio do nada, não há casas próximas. Mesmerizado, Dario não sente mais azia, nem se dá conta que um homem aproxima-se atrás dele, desferindo-lhe um golpe na nuca. Dario cai desfalecido.
Ou então: (2)
... alguns metros à frente, lá está a carroça, parada junto ao meio fio. Só que seu dono não é um velho, é um rapaz. Ele fuma algo semelhante a um cigarro de palha. Olha pra Dario se aproximando e passa a se comportar como o típico mineiro capiau: desconfiado, mas sem o menor traço de hostilidade, apenas tímido demais para deixar transparecer a curiosidade sobre aquele maluco descalço que o segue. Pita e fita com rabo de olho. Dario diz boa noite, pede desculpas se o assustou. O cara continua mudo. Diz que está procurando-o há dias, precisa urgente de muita lenha pra abastecer sua lareira naquele frio que cisma em perpetuar.
"Pode me vender, vi que a carroça tá cheia?".
"Cheia de que?" são as primeiras palavras do capiau.
"De lenha, oras" e Dario ri, achando o cara quase tão capiau como um homem das cavernas.
"Mas não é lenha qui tem aqui não, moço." E o cara retira a lona que recobre a caçamba da carroça. Dario não se lembra de ter visto lona nenhuma. Mas o que há sob ela deixa-o espepufato, sem reação.
Lá estão o álbum que Dario fez com os colegas de escola quando concluíram a 4ta série primária e há ele achava ter perdido há anos. A camiseta que adorava com a estampa do calendário maia. Seu primeiro canivete suíço, a boina que usava quando criança e nunca mais viu. O caderninho onde anotava poemas para suas musas de adolescência, a prova da segunda etapa do vestibular da ufmg que fez com displicência e não passou. Uma caixa de lata onde seu pai guardava a coleção de moedas antigas, que Dario achava que a madrasta havia roubado. Céus, o livro "Sábado do Vapor", que leu, amou, emprestou e perdeu. Passagens de viagens que não fez, fotos de pessoas que teve vontade de conhecer mas se acovardou e até dele mesmo, bem diferente. Em suma, o cara levava na carroça não só a vida de Dario, mas também todas suas vidas potenciais. Depois de um tempo indefinido, ele senta no meio fio e começa a chorar. Aquilo só podia ser sonho.
Ou então, ou então! (3)
...rapidamente Dario alcança a carroça. Chama pelo carroceiro, que se vira pra ele. É mesmo um garoto. Explica que quer comprar lenha. Tudo bem.
"Só não estou com grana aqui, mas minha casa é aqui do lado"... o garoto o interrompe, diz que num carece não, fica pra virar freguês.
"Como virar freguês sendo que é quase impossível de te achar?"
"Né mais não.", e o garoto lhe estende um cartão de visitas de fino trato, papel de primeira e tudo. Mas a única coisa que está escrita é um número de celular. O menino convida-o a subir na charrete para levá-lo, assim como a lenha que adquiriu. Dario acha o cavalo bonito, pergunta o nome.
"Tem nome não".
"E você, como se chama?"
"Moço, nessa história os nomes não são importantes". Mais um zureta, pensa Dario. E chegam em casa. Num toque final de bizarrice, o menino instrui-o para só queimar a lenha se estiver em paz com ele mesmo.
"Porque, tem alguma droga na lenha?"
"Se o sinhô quiser chamar minha lenha de droga, pode chamar. Mas já te disse que nomes são supérfluos".
Supérfluos... o cara conversa como um matuto, mas o sotaque some quando diz a a palavra complicada. Tá tudo estranho demais... Dario convida-o para entrar, está feliz, quer comemorar, mas o menino vai embora sem responder. Ângela assiste a cena de longe. O namorado comenta com ela o quanto o garoto é esquisito.
"Mas que garoto? Aquele é um velho. Dario, cê bebeu?"
Ele apenas olha pra ela e em seguida em volta. Tem uma sensação bem nítida de deslocamento, strange man in a strange land. Ele quer acender o fogo o quanto antes, ela pondera sobre o aviso do cara. Dario não sabe o que fazer, deita no sofá e fica abraçado com Ângela. Aquilo já não o faz se sentir tão fora do lugar.
Pare a leitura. Em primeiro lugar, Parabéns por ter tido a pachorra de ter chegado até aqui. Agora você vai escolher entre uma das 3 opções acima e vai ler somente o texto correspondente à sua escolha, portanto não leia o texto logo abaixo se sua opção foi a 2 ou a 3, sacou? Siga as instruções quando houver mais escolhas. E em hipótese nenhuma leia o conto de forma linear, não vai fazer sentido. Depois você pode bolar outra história com desdobramentos totalmente diferentes. Não é divertido?
Parte 2
Opção 1. Escolha:
1a) se Dario descobrirá segredos esotéricos, envolvendo bruxaria.
1b) se será submetido a um julgamento surrealista, onde sua existência será questionada.
1a) O Escolhido
Dario abre os olhos. Tenta se mexer mas percebe que está com mãos e pés atados a uma cadeira. Seus olhos estão vendados. Ele grita:
"Pelamor de Deus, o que está acontecendo? Eu não fiz nada, só segui o cara na carroça por um pouco de lenha."
O silêncio reforça o desespero de Dario: "Por favor, não me matem, eu não vi nada, não sei quem são vocês e..."
"Estávamos te esperando, Dario Bosside." Uma voz masculina, grave, forte, experiente.
"Há muito tempo, aliás. Acompanhamos sua infância perfeita, muitos mimos, o mal que os mimos te causaram quando entrou na adolescência, a juventude confusa, a recusa em amadurecer, seu estado atual de desorientação. Estávamos preocupados, por outro lado sabíamos que teria seus percalços num mundo como esse, você não foi feito pra ele, todo potencial Sacerdote tem as mesmas dificuldades".
"Como é que é? Sacerdote? Vocês estão vendo muito telecine action. Gente, esse papo parece texto daqueles filmes de suspense bem ruins. Vamos cortar a besteirada: que é que querem de mim?"
A voz ignora Dario e continua:
"Com o tempo ficou claro que uma hora ou outra você encontraria seu centro, o momento em que se revelaria de onde vem realmente e qual seu papel. Esse momento chegou, meu filho. Você não é quem pensa ser, sabe apenas parte da história. Sabe que foi adotado ainda muito jovem, mas não tem idéia de quem sejam seus pais biológicos. Eram pessoas muito especiais, que abriram mão de suas vidas para gerar o líder que vai possibilitar mudanças tão radicais que, por enquanto, você será poupado de conhecê-las. "
"Para sua total compreensão é necessário que voltemos aos tempos da Roma antiga. Naquela época, Dario, antes de a Igreja Católica começar o massacre de todos cultos pagãos, as mulheres celebravam seu poder em cerimônias secretas, conhecidas como bacanais. Pouco a ver com a conotação atual do termo. Cultuavam Baco, Deus do Vinho em festividades onde predominava o hedonismo. Você quer fazer fogo, não é, foi isso que o trouxe aqui. Sabia que as bacantes mergulhavam tochas acesas nas águas do rio Tibre e mesmo assim não apagavam?"
"Até que surgiu Paculla Annia, uma sacerdotiza italiana do sul, que mudou totalmente a natureza das bacanais. Foi ela quem autorizou a presença masculina nos ritos, transformando-os não só em festas do vinho e da libertinagem, mas em celebrações em homenagem à Mãe-Terra, à vida, à liberdade. Houve relatos de telepatia e clarividência nesses eventos. Não demorou muito para a popularidade de Annia chegar aos ouvidos das autoridades romanas, que, sentindo-se ameaçadas, proibiram as bacanais em 186 A.C. Pouco se sabe sobre Annia depois disso, exceto que teve dois filhos."
Dario não sabia o que pensar. Aquelas pessoas loucas o agrediram, sequestraram, e mesmo assim ele começa a sentir-se mais à vontade e tranquilo. Na verdade, Dario estava adorando a história.
"Com a perseguição às bacantes se intensificando, fazia-se necessário reunir as melhores sacerdotizas em uma Ordem Secreta, para manter vivas suas tradições e sabedoria. Criou-se a Ordem Divina da Manticora, criatura mitológica oriunda da Pérsia. Com corpo de leão, cabeça humana e cauda de escorpião, ela tornou-se para nós o símbolo da capacidade feminina de não apenas nutrir e proteger, mas também de atacar e destruir. Em cada mulher residem os pólos opostos cujo equilíbrio é determinante na harmonia do cosmos".
Já quase se divertindo, Dario pergunta: "kikotenho a ver com isso?"
"Já prestou atenção em seu nome, Dario Bosside?"
"É de origem francesa."
"Ah, é? Já ouviu falar em alguém com esse sobrenome? Você já esteve na França, conheceu algum Bosside?"
Não, Dario nunca tinha ouvido falar em Bosside nenhum.
"Meu filho, você é uma pessoa singular, comprovadamente descendente direto de Paculla Annia. Há apenas mais uma pessoa que conhecemos com a mesma ascendência e quando conhecê-la, uma bela jovem, por sinal, vocês serão coroados Rei e Rainha."
"Rei do quê? Vocês são loucos! Maldito Código da Vinci, aposto que leram o livro e tiraram essas idéias alucinadas dele."
"Sabe o que é um anagrama? Rearranje as letras do seu nome e terá: Rei dos Diabos."
Meu Deus do Céu, sou o Rei dos Diabos... Dario pensa. Explica que aquilo é obviamente um grande baque, que toda aquela tensão o deixou com vontade de ir no banheiro. Ele é desamarrado, e ainda vendado, é acompanhado por uma pessoa para um canto mais afastado da tenda. Pede licença ao "guarda", não consegue urinar com alguém olhando. Aí ouve um baque surdo, seguido de um grito de dor. Ele retira a venda e vê o capanga desmaiado no chão. Do seu lado, um velhinho com uma bengala na mão. Muito parecido com o garoto da carroça de lenha. Parecido demais até. "Vem comigo, minino. Essa gente num presta. Meu cavalo corre que é uma beleza". Dario sente a visão turvar-se por um momento. Sua sanidade sendo posta à prova: aquele velhinho é o mesmo jovem da carroça que perseguiu.
E agora? Foge com aquele ser de idade indefinida, correndo o risco de ser pego? Vá para o capítulo 1a1) Fuga dos Lunáticos.
Ou evita o carroceiro e volta para a tenda onde é "Rei"? Prossiga onde estiver escrito 1a2) O Rei Dario
1b) O Encontro
Recapitulando: Dario enfim encontra o cara na carroça com lenha, vai atrás dele e depara-se com um tipo de ritual primitivo, pessoas nuas dançando em volta do fogo. Recebe um forte golpe na nuca e cai desmaiado. Nesse momento o leitor é apresentado a duas escolhas: a cerimônia é um rito esotérico pancadão (1a), ou trata-se de um julgamento pouco convencional (1b). Aqui vão os desdobramentos da segunda opção. O autor recomenda a leitura dos capítulos anteriores antes de prosseguir aqui.
Dario acorda do nocaute confuso. Não sente dor onde foi golpeado. Está sentado em um tipo de poltrona, tenta se mexer e percebe, estupefato, que seus músculos simplesmente não respondem a seus comandos, como se estivesse preso naquele assento. Olha em volta, num horror crescente, mas tudo são trevas, exceto por um poderoso holofote frontal que o impede que veja qualquer coisa, no melhor estilo julgamento do herói. Algemas o prendem a uma cadeira. Seu pavor aumenta e irracionalmente, ele grita:
"Fidélio! A senha é Fidélio!"
Para sua estupefação ouve risadas maldisfarçadas que vêm detrás da luz ofuscante. Em seguida, uma voz feminina bem sexy destaca-se entre os risos. Ela ri, mas de modo amargo:
"Pobre Dario. Mesmo na pior circunstância possível, cativo de pessoas que já o atacaram, talvez mais perto do que nunca da morte, ainda se agarra a seu mundo fantasioso. A vida não é filme, querido. A realidade não é a reprise de alguma porcaria que goste, onde todos se comportam previsivelmente de modo que você seja, senão o herói, pelo menos o protagonista. Lembra-se da sonda? Você tinha ido ver um filme onde um tipo de nave é miniaturizada e injetada em um corpo humano. Como aquilo atiçou sua imaginação... uma sonda pilotada por você, que exploraria o mundo a seu redor ao mesmo tempo em que faria jornadas de autoconhecimento, pois o movimento exterior é análogo ao movimento interior. Você escreveu essa frase em seu diário, um jovem de 13 anos cheio de idealismo, apesar da idade conturbada, o desejo de viver lutando contra o medo e a apatia. Dario, o que você fez com a sonda? Para onde você a levou? Não percebe que nos últimos anos tudo que tem feito é dar voltas e voltas em torno de si mesmo? Sua Enterprise, em vez de explorar o desconhecido, travar contato com ele até incorporá-lo, orbita em torno de uma lua desabitada, escura e fria. E o tempo é implacável, a cada segundo você perde uma oportunidade de mudar e crescer."
De algum lugar mais afastado ouve-se um som estranho, indefinível. Um ruído constante, mas discreto. Dario não sabe o que dizer. Quem são aquelas pessoas? Como saberiam da história da sonda, ele nunca tinha comentado aquilo com ninguém.
"Eu... eu vou chamar a polícia se não me soltarem agora!" A voz ri de novo:
"Viu as pessoas dançando nuas em torno da fogueira? Em algum ponto de suas vidas elas ouviram o chamado e o atenderam. E se prepararam para este dia. Você também foi convocado. Lembra-se daquele sonho em que você e seu pai voavam como pássaros e ele te mostrou a Praça da Liberdade? Houve vários outros sinais, mas você nunca se permitiu compreender. Precisamos da ajuda de nosso agente para atraí-lo até aqui. Isso chamou nossa atenção. Seu incrível medo de viver a vida, correr riscos, um embotamento dos sentidos, um senso de preservação contraditoriamente auto-destrutivo. Um exemplar-símbolo da Humanidade."
"Você pertence a uma espécie tão confusa e desamparada. Sequer sabem de onde vêm, muito menos para onde vão. Descendem mesmo dos símios? Ou seriam híbridos, fruto da miscigenação de uma raça do além com os símios? Ou seriam mesmo, como muitos de vocês gostam de pensar, filhos de Deus, criados à sua imagem? Entendemos sua angústia, a necessidade de preencherem seu vazio espiritual com entidades com quem se identifiquem. Mas o que nos deixa maravilhados é o fato de esse desamparo não tê-los impedido de chegar tão longe sem se auto-aniquilarem. Dario, você e seus pares são capazes de fazerem coisas tão belas e ao mesmo tempo cometem atos tão repugnantes... quem são vocês, afinal? Que direção a sonda da Raça Humana segue?"
Ele nota que o grupo detrás do holofote começa a andar na direção do ruído. De repente, um conjunto de luzes acende a 4 metros de altura.
"Dario, o que disser agora vai decidir seu futuro. Uma pergunta banal, mas a única realmente relevante. Qual é o sentido da Vida?"
Dario pode dizer: "Quem busca o sentido da Vida na verdade quer sentir a experiência de estar vivo em sua plenitude." (Joseph Campbell) Nesse caso, continue a leitura em 1b1) Campbell
Ou pode falar: "A Vida é como plantar uma árvore cuja sombra você nunca vai aproveitar". (Nelson Henderson) Vá direto pra 1b2) Henderson
2) A Viagem Interna
Dario descobre que sob a lona que supostamente cobria a lenha na verdade há um memorial de sua vida, assim como das escolhas que poderia ter feito. As oportunidades perdidas e onde elas o levariam, documentos que na realidade não existiriam, pois se referiam a vidas virtuais. Ele se sentiu como se tivesse ao mesmo tempo levado uma pancada na cabeça e uma facada no coração. A culpa e o arrependimento o sufocaram, a dor na alma foi tão forte que ele não se aguentou em pé, sentou no meio fio e chorou. Pois, a rigor, nunca havia realizado nada na vida, nunca deixara de ser o adolescente inconsequente. Uma criança séria, contida, mas inteligente e perspicaz tornou-se um fracasso aos 30 anos, uma eterna promessa, na melhor das hipóteses. Ele sabia qual era o caminho caminho certo, viu as placas indicativas, mas sempre fez as escolhas erradas, as mais fáceis.
Ele recebera o chamado da maturidade e tinha tudo para dar mais um passo em direção ao auto-conhecimento, tornando-se mais confiante, com maior controle de si próprio. Sua imaginação borbulhava, as possibilidades pareciam infinitas... já não via o outro com receio, pelo contrário, enxergava-se nele, passou a se identificar com Humanidade. De repente sentia fazer parte de algo maior, e como tudo isso parecia quase assustador, de tão novo. Anos depois, recordando-se desta fase, concluiu que tinha entrado, na verdade, pela primeira vez na em sua existência, na cadência do Cosmo, na frequência da vida. Foi como se sua janela para o mundo, que sempre estivera fechada, tivesse sido aberta completamente, de uma vez.
Você é jovem, a vida é longa
Dá pra matar o tempo hoje
Aí um dia você descobre
que dez anos se passaram
Ninguém te disse quando correr
Você perdeu a largada
Talvez ficou cego pela súbita luminosidade. Ou o medo enorme de fracassar falou mais alto. O fato é que ele tinha a faca e o queijo na mão. Mas os ratos comeram o queijo, a faca ele usou em si mesmo.
E você corre e corre para alcançar o sol mas ele está se pondo.
Dando voltas para você alcançá-lo e depois perdê-lo novamente.
O sol, de maneira relativa, é o mesmo, mas você está mais velho.
Perdendo o fôlego e um dia mais perto da morte.
Dario sempre gostou de "Time", achava bacana a identificação com a letra. Hoje parece trágica, triste, fatalista. Foi-se o glamour do estilo de vida "James Dean", como ele gostava de pensar, entrou um estado de quiet desperation, à maneira inglesa. The time is gone, a música acabou, pensou que tinha something more to say.
De volta ao lar.
Gosto de ficar aqui quando posso.
Quando chego em casa cansado e com frio
é bom aquecer os ossos no fogo
Dario limpa as lágrimas e sorri. Até na música melancólica do Pink Floyd era impelido a procurar a lenha. O homem da carroça, que acompanhou em silêncio seu choro, enfim pergunta se pode ajudá-lo em alguma coisa.
"Que loucura é essa? Isso não pode ser real, os documentos do meu passado você pode ter conseguido, mas e todas essas coisas do futuro? Passagem aérea para Izmir, na Turquia, para 2008, em meu nome?"
"Moço, essa coisa de real ou invenção é meio estranho"... Dario finalmente repara que o cara não tem um olho mesmo, no lugar dele uma pele enrugada, causando quase pavor pela feiúra.
Agora chega a hora de escolher. Todo o relato acima realmente não passou de um sonho, Dario vai acordar no dia seguinte em sua cama e ir correndo escrever o sonho, como costumava fazer. Se essa for a escolha, pule direto pro título 2a) O Sonho
Ou ele resolve simplesmente aceitar esse fato inexplicável e elogia o burrico que puxa a carroça. O homem apenas olha pra ele e pergunta de novo se pode ajudar.
"Sim, quero saber mais, quem é você, como desenvolveu essa capacidade de descobrir vidas alternativas, isso é fantástico."
"Intão o sinhô vai ter que procurar um cumpadi meu, te dou o endereço. Mas achei que o sinhô tinha falado que queria era lenha."
"Mas você não tem."
"Tem, sim." E ele dá um assobio. Dario vê Ivanzão surgindo Deus sabe de onde e caminhando em direção a ele, com um enorme feixe de lenha.
"Ô Dario me ajuda aqui, tô carregando isso desde lá longe. Meu cigarro tá acabando, me empresta uma grana pra eu comprar 3 maços de Carlton?"
Se escolheu isso, vá direto pra onde tá escrito 2b) A História de Ivanzão
3) A Lenha, a Lareira e o Imponderável
A opção 3 seria a mais "normal", sem a pirotecnia das duas primeiras, mas ainda assim com um toque de fantasia na figura do velho (ou menino) da carroça. Ela nos traz de volta ao início da história, com uma diferença crucial, no entanto. Dario se vê novamente abraçado com Ângela olhando as gotas de chuva rolando no vidro. Mas há um elemento novo no cenário: lenha. Um monte de toras empilhadas ao lado da lareira. Ele volta seu olhar para elas, sente sua paz de espírito potencializada. Essa chuva de serenidade não impede que o frio continue açoitando.
"Vamos acender o fogo?"
"Você ouviu o velho falar..."
"O que, mesmo?"
"Sobre os perigos de queimar a lenha na presença de uma pessoa que não esteja em paz consigo mesma."
"Eu tô, totalmente. Você aqui, lenha na lareira, vodca e suco de laranja na geladeira, o que mais posso querer? Viu que meu mau humor passou? Até a azia passou. Peraí (arrota). A azia voltou."
"Tem certeza que você está legal? O velho parecia saber do que estava falando..."
Ela está usando uma camisola vermelha e segura uma xícara de chá gigante. Cidreira.
"Só faltava essa... o cara queria encher o saco mesmo, vai escutar conselho de velho macumbeiro?"
"Não sei não, Dario... tem certeza?"
"Tenho."
E se põe a organizar a fogueira, madeiras entrecruzando-se no estilo fogueira de festa junina. Gravetos e jornal no meio, divididos por camadas. Fazer fogo é uma arte, essa é a arte do Dario. Quando criança, montava cidadezinhas com palitos de fósforo e cola, adicionava objetos plásticos e tudo mais que pudesse tornar a brincadeira mais excitante. Depois começava o "incêndio" num canto e via o fogo se alastrar, enquanto narrava a tragédia pra uma tv imaginária.
Risca o fósforo e põe fogo nas tiras de jornal. Assim como em seu entretenimento de criança, o fogo pega com incrível rapidez e ele fica olhando abestalhado as labaredas fazendo poemas concretos. Mas, como é de se esperar numa história onde o vendedor de lenha oscila entre 18 e 88 anos, dependendo do ponto de vista; algo muito estranho começa a acontecer. Ângela e Dario estão novamente abraçados no sofá, ele tenta prestar atenção na novela, mas não consegue tirar os olhos do fogo. Não se dá conta que o extraordinário já está se apossando do ambiente. Nesse momento a campainha toca. Dario atende:
"Sou eu, Ivanzão."
"Quê que cê tá fazendo aqui, inda mais nessa chuva?"
"Ah, cara, rolou uma deprê. Me pegaram escondido no vestiário feminino da academia. O segurança me arrastou pra fora, reagi, queriam chamar os home, as gatinhas tudo olhando. Deixa eu entrar, pô! Eu num tô legal."
Dario fica em silêncio. Numa outra circunstância, é lógico que ia acolher o amigo sem pestanejar. Mas Ivanzão declarou não estar em paz, portanto se o velho falava a verdade, trazê-lo para perto da lareira é totalmente contra-indicado.
Agora é com você: Inventa uma desculpa para Ivanzão não entrar, chama um táxi pra ele? Afinal, o velho foi taxativo quanto ao risco de más vibrações próximas do fogo. Se é isso que faria... dá licença, mas que amigo tu é, hein! Vá para o capítulo 3a) Only good vibes
Se não dá importância à advertência do velho e permitir a entrada do amigo, correndo o risco de acionar o gatilho de uma série de consequências imprevisíveis, pule para 3b) ?
Parte 3
Esta é a fase final do conto. Procure a alternativa que escolheu na parte 2, indicada por aquelas letras e números e leia somente esse trecho. Ficou meio confuso, eu sei, mas siga as indicações e não vai se perder:
1a1) Fuga dos Lunáticos
Dario ainda hesita por alguns instantes, afinal como pode confiar num cara que num momento parece jovem, mas quando olha de novo é um velho? Por outro lado, a realidade não pode ficar mais bizarra quando os adeptos da tal Ordem Divina da Manticora dizem que seu nome é um anagrama de "rei dos diabos". Ele então resolve seguir o velho, sobem na carroça e imediatamente o cavalo sai em disparada levando-os por um caminho iluminado apenas pelo brilho da lua cheia. De fato, ele é rápido, mas quando Dario olha para trás e vê que estão sendo seguidos por um jipe não pode deixar de pensar: "agora fudeu". No entanto, não nos esqueçamos que trata-se de uma história fantástica, tudo pode acontecer.
Como numa versão caipira de James Bond e seu Aston Martin cheio de truques, o velho vira-se para trás, destrava a tampa traseira da carroça e pede para Dario empurrar para fora umas toras enormes que estão na caçamba. Detalhe: ele pode jurar que elas não estavam ali até alguns minutos atrás. Mas não há tempo para questionar a realidade, pois o jipe está chegando perto e sabe-se lá o que os perseguidores farão a eles se forem pegos. As toras começam a ser atiradas pelo caminho, o jipe desvia da primeira, da segunda, mas na terceira não consegue se desvencilhar, o pneu bate na tora, o motorista perde o controle, o carro voa alguns metros e capota. E a carroça prossegue seu caminho, incólume, inatingível.
Após alguns desvios chegam em um casebre bem humilde no meio da mata. O velho o convida para entrar, faz um café no fogão de lenha, enrola um cigarro de palha e começa a falar:
"Eu já te conhecia, filho. Tava só esperando o momento certo para a gente ter essa conversa. E talvez, depois de tanta coisa estranha que já viu essa noite nem vai duvidar do que vai ouvir. Aqueles loucos vão continuar atrás de você. Nessas alturas já foram em sua casa, e torça para que não façam mal à sua namorada. Porque eles são do mau mesmo. É melhor nem falar no que vai acontecer se conseguirem te pegar. Em algum ponto a Ordem se desvirtuou, virou um grupo de lunáticos obcecados com o poder. Têm planos megalomaníacos, se afastaram de Deus. Minha missão era impedir sua captura. Se seguir meu conselho vai conhecer um outro grupo, quase tão antigo quanto a Ordem, meus amigos. Já estou velho e cansado, preciso que alguém assuma meu lugar. Como já deve suspeitar, esse alguém é você. "
"Quero que seja o novo Homem da Carroça de Lenha. Meu pessoal passou a dominar a alquimia ao longo dos séculos, você vai ter acesso a habilidades que julga impossíveis, que a ciência não explica. Elas vão protegê-lo da Ordem. Ainda há certos bosques cujas árvores têm propriedades mágicas. Sua missão é preservar esses lugares, aproveitar a lenha que fornecem para oferecê-la a determinadas pessoas que precisam dela por algum motivo especial. Através da queima, extraímos da madeira certas substâncias que alteram a consciência, e fazem muito mais. Com o tempo vai entender nossa importância e a necessidade do anonimato."
Dario não se dá conta que a fumaça do fogão de lenha já o induziu a um transe hipnótico. As palavras do velho chegam direto a seu inconsciente. O velho coloca um espelho em sua frente. O que ele vê pouco se assemelha a seus traços. E desmaia pela segunda vez na noite.
Acorda sozinho no casebre no dia seguinte. Já não chove mais, o céu está azul, sem nuvens. Com a maior naturalidade, como se já fizesse isso há anos, pega o machado, sobe na carroça e sabe exatamente para onde ir.
Nunca mais se ouve falar em Dario Bosside. Mas o velho da carroça de lenha às vezes é visto comprando mantimento na vila. Ninguém nota que sua aparência mudou, parece mais jovem, como às vezes lembra Dario. Ninguém menos Ângela. Um dia se encontram por acaso, não se reconhecem, mas sentem uma atração inexplicável. Ela o convida para tomar um chá. E alguns dias depois abre mão de toda sua vida pregressa para se mudar para o casebre na mata, onde cuida da hortinha enquanto seu companheiro sai pra cortar lenha ou para vendê-la.
1a2) O Rei Dario
Dario grita por socorro, o velho que ele tanto quis encontrar agora causa paúra, quer distância dele. O velho solta um palavrão e corre em direção à carroça, gritando que Dario não sabe o que faz. Logo chegam uns seguidores da seita, outros entram num carro e saem em busca do velho enquanto Dario é reconduzido ao descampado onde está a fogueira. Contudo, para sua surpresa, ele é imobilizado e algemado. Tampam sua boca com fita isolante. Arrepende-se por ter se deixado seduzir pelo discurso alucinado dos fanáticos, bastou que afagassem seu ego para suas suspeitas com relação a eles se dissiparem. "Rei dos Diabos"... Ele é amarrado a uma viga enterrada no chão. O horror, o horror. De algum lugar trazem uma jovem mulher, também algemada e amordaçada. O cara que parece ser o líder da tal Ordem recomeça o discurso:
"Majestade, perdoe a falta de delicadeza por parte de nós. Não sabíamos como iria reagir ao destino que deve cumprir. O que é irônico, pois qualquer um de nós faria qualquer coisa para estar em seu lugar. Vai inseminar nossa rainha, e seu filho será o líder de uma Revolução que vai mudar os rumos que a Humanidade está trilhando. Apenas aqueles de espírito mais elevado irão sobreviver... mas isso não vem ao caso. O importante agora é que fique íntimo da bela jovem ao seu lado, que faça amor com ela e depois disso vai poder retomar sua vida normalmente ou assumir seu lugar como o Soberano da Ordem. Claro que torcemos que escolha que fique conosco, mas a decisão é sua. Então, vai aceitar sua incumbência com boa vontade? "
Dario olha para a moça a seu lado. Obviamente ela está em pânico, olhos arregalados, lágrimas escorrendo. Retiram a fita isolante de sua boca para responder à pergunta.
"Seus malucos doentes... não vou estuprar ninguém."
"Majestade, sua rudeza fere nossa sensibilidade. Evidentemente será um coito consensual, afinal estamos certos que nenhum de vocês dois vai preferir morrer a praticar um simples ato sexual. A Rainha ficará sob nossos cuidados somente até o nascimento do Messias, depois poderá optar pela liberdade."
Enfiam um comprimido em sua goela. Viagra?
Sim, Dario acaba "inseminando" a moça. De modo bem triste e previsível, a voz que se dirigiu a ele não cumpre a promessa de libertá-lo, em vez disso ele é novamente amarrado à viga e acendem uma fogueira sob seus pés, como na inquisição. Seu último pensamento o remete à uma música do Henry Mancini, Moon River. Um filme antigo, qual era mesmo? Uma parte que fala: "my huckleberry friend". Uma menção à Tom Sawyer e seu amigo inseparável, a imagem dos dois meninos descendo o Mississipi numa jangada tira sua consciência daquelas trevas. O calor das labaredas lambendo seus pés descalços já é insuportável. Dario lamenta nunca ter tido um huckleberry friend.
FIM
1b1) Campbell: "Quem busca o sentido da Vida na verdade quer sentir a experiência de estar vivo em sua plenitude."
"Resposta sagaz, hein, Dario? Diz muito ao mesmo tempo em que não diz nada. Então gosta do Campbell. Segundo ele, o sentido da vida reside no próprio milagre da existência, na experiência única do estar aqui e agora, os sentidos recebendo e selecionando os estímulos, o cérebro apreende a informação, transforma-a em pensamento, que leva à emoção e essa pode resultar ou não na atitude. Para nossa espécie, trata-se de um processo fascinante, desconhecíamos aquilo que chamam de sentimento. Contudo, esse tal sentimento na maioria das vezes prejudica sua capacidade de fazer as escolhas certas e mesmo assim continuam agindo com o coração. Compreender a fala de Campbell implica em enxergar a pergunta através do coração, o que para nós, seres estritamente racionais, é impossível."
Dario nota uma mudança no tom de voz de seu interlocutor, que prossegue:
"Você tem idéia do que é estar na pele de um ser que, embora vivo, nunca terá qualquer emoção, sobretudo aquela que é gerada pela experiência de estar vivo em sua plenitude?"
FIM
1b2) Henderson: "A Vida é como plantar uma árvore cuja sombra você nunca vai aproveitar".
Essa resposta parece causar uma certa surpresa, talvez até comoção para os captores de Dario. Um burburinho ressoa à sua volta. Algumas figuras se afastam, enquanto outras se aproximam.
"Dario, devemos confessar que essa resposta nos confundiu ainda mais sobre a natureza humana, sobretudo sobre sua natureza. Um jovem inconsequente, de vida desregrada, tendências hedonistas, cuja maior preocupação até o momento era conseguir uma carga de lenha para aquecer seu mundinho particular... e, não por acaso, a lenha tão procurada vai ser consumida em algumas horas, porque sua vida funciona assim, todo empreendimento seu tem que ter retorno imediato.
"Então vem com um aforismo que parece ter saído da boca de um daqueles ascetas. Enquanto a Humanidade sempre associou-os a virtudes quase divinas, devido a seu desprendimento das coisas terrenas e renúncia a qualquer tipo de prazer, a mais pura das atitudes; Nietzsche enxergou por trás dessa "santidade" pessoas vaidosas e extremamente conturbadas. Em seus íntimos travava-se uma sangrenta luta entre "bem" - abstinência de todas as formas - e "mal" - o sexo, mesmo para procriação. Como usufruir da vida com uma visão tão rigorosa e negativa do que ela tem de melhor? Essa culpa está disseminada em todas as religiões ocidentais, o que explica em parte o quanto os humanos são angustiados, fragmentados, infelizes. Afinal vocês já nasceram pecando. Como diria Calderon de la Barca: "a maior culpa do homem é ter nascido".
"Então você, que se diz agnóstico, não crê em vida após a morte e tem grandes desconfianças sobre sua própria espécie, nos diz que o sentido está em apostar no futuro, mesmo que isso implique em abdicar do presente?"
"Como dissemos antes, te conhecemos, é altamente contraditório, mas a nosso ver esse é o verdadeiro Dario. Gostaria de se juntar a nós e viajar pelas galáxias?"
Nunca mais Dario foi visto.
FIM
2a) O Sonho
Então tudo aquilo tinha sido um sonho. Dario acorda confuso, com uma sensação de urgência. A dream you dream alone is only a dream. A dream you dream together is reality. Por alguma razão que foge do nosso entendimento, ele passou a ouvir frases famosas de John Lennon. Não sabia de onde elas vinham. They hate if you´re clever and despise if you´re a fool. Pega uma caneta e tenta pôr o sonho em palavras. Aí que percebe: aquele não é o seu quarto. Não o atual. Era o quarto do apartamento onde morava quando tinha 16 anos. Ele pensa ainda estar sonhando, olha-se no espelho e quase morre de susto: está magro, rosto saudável, enfim, voltou de fato aos 16 anos. O tempo simplesmente reprocedeu. O velho era mesmo um bruxo, ou um hipnotizador nota 10. Não, aquilo era real. Most people spend their lives making plans. Foi-lhe dada outra chance. Uma oportunidade de fazer as escolhas certas. Será que vai mesmo agir diferente, vai ter a força de caráter necessária e o discernimento para escolher a estrada menos percorrida e chegar aos 30 e poucos menos neurótico, mais feliz? Mais humano?
Ou estaria fadado a cumprir um destino vazio, cometendo não os mesmos erros, mas outros?
FIM
A publicar:
2b) A História de Ivanzão
3a) Only Good Vibes
3b) ?
7 comentários:
Oi, lôro.
Feliz por você ter dado, enfim, continuidade a "saga do velhinho da lenha".
Esperava a história 3 há um tempão.
Pois é... o imponderável, às vezes, brinca de realidade. Talvez por isso, eu tenha gostado tanto desse desdobramento.
Gostei especialmente dos detalhes. Do Dario e da Ângela juntos (torço pra eles, ainda que o caminho de ambos seja cheio de toras de lenhas, disfarçadas de obstáculos).
Gostei de como o Invanzão apareceu (aquela história da academia não me é estranha.) Estou curiosa.
E achei engraçado você falar em camisola vermelha e chá de cidreira. Pode imaginar o porquê...
Os finais da história 3 prometem.
Fiquei surpresa de você já ter escrito o final da história 1(pelo menos um deles). Dei um sorrisão quando vi que o Dario se transformou no Velhinho da Lenha.
E sorri de novo quando falou de alquimia. Será que a madeira esconde os segredos da Pedra Filosofal? Talvez a fumaça dela dê vida a salamandras que transformam almas de chumbo em almas de ouro...
;)
E, imagino que esse final de Dario e Ângela juntos tenha sido feito meio de improvisao, mas não nego que, no fundo, no fundo, gostei muito, já que a ficção pode, um dia, se transformar em realidade.
Pelo menos, enquanto o impoderável existir.
Esperando os outros finais e torcendo para que o nosso, seja feliz.
Um beijo de esquilo.
Só pra dizer o que você já sabe: pãozim de queijo! ;)
Owwwwwwwwwwwwwwwwwwwwwww, Dario queimado em uma fogueira...
Parece que o autor acendeu as chamas da auto-inquisição e está exorcisando seus fantasmas em personagens que vão além da ficção.
Parece que o autor, brilhante que é, não sabe, ou acha que não sabe, mas queima por dentro enquanto finge pro mundo uma calma que só existe nas linhas de um livro imaginário.
Beijos, meu lôro.
Beijos.
Afe!
Exorcizando! :P
Com z, de zum zum.
Tento conter minhas emoções e lhe conferir um elogio mais centrado no contexto de seu conto, mas fazer isso seria refutar de minha condição vigente, e isso, assim penso, não estaria sendo sincero contigo.
Meu caro, tens demasiado talento para a escrita, uma criatividade ímpar, uma linguagem bastante comunicativa e que instiga a leitura. Fiquei maravilhado com tudo no seu blog: a história do velhinho que, criativamente, desemboca em várias outras histórias; os teus artigos noticiados...Bem como ter relembrado a Chiclete com Banana, realmente um belo espaço para o sarcasmo criativo. Quem não lembra dos "Escrotinhos"? Você prometeu falar dela num futuro, vou esperar ansioso!(risos)
Desculpe-me por não me ater apenas ao post referido, pois como disse, estou sujeitado as minhas emoções, e a razão me falha nesta hora.
Parabéns, e que a força esteja com você!
Comentário pro final 1b1:
Sabe, às vezes acho que você vai parar de me surpreender. E no entanto...
É tão gritante a diferença entre você escrevendo e você falando que chego a pensar se estou diante duas pessoas diferentes. Ambas intrigantes.
Mas não. As duas metades, na verdade, são parte de um único homem. Homem, sim. Que, pra esconder o brilhantismo de uma mente que pulsa, se disfarça em menino.
"Com quem mais eu leria Guimarães Rosa?"
A resposta chega em forma de pergunta, na melhor tradição judaica:
- De quem mais eu leria uma história que ameaçou ir por água abaixo com surtos de ficção e terminou em Campbell?
Campbell!
Sabe quantas pessoas podem sair citando Campbell, assim?
Acho mesmo que você se disfarça. Que nessa história, mesmo que a intenção não seja autobiográfica, o autor é o ET. E o Dario.
Você diz em códigos, o tempo todo, que não sente a vida.
Mas a vida vibra em você. Em cada átomo. Mesmo os adormecidos.
Que o projeto anti-matéria mate, então, o Dario de átomos adormecidos. E que ele renasça do pó cósmico. Pó que brilha, como você, às vezes, consegue brilhar pra mim.
Comentário pro final 1b2:
Parece que "o jovem inconsequente, de vida desregrada e tendências hedonistas", enfim, está descobrindo o homem que esconde por dentro.
E quando é mesmo que a ficção vira realidade?
Ou elas se confundem o tempo todo?
Quando é mesmo que Dario, enfim, percebe o mundo com os olhos de quem "vê" ao invés de apenas enxergar?
Tenho pra mim que esse dia, ou já chegou, ou estar
Que final, lôro!
Que final!
Os delírios da gripe fizeram bem a você.
Beijo tríplice, com todo carinho que cabe em mim.
Por culpa do "teclado" :/
o comentário saiu cortado:
"Tenho pra mim que esse dia, ou já chegou, ou ESTÁ POR VIR".
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